sábado, 1 de dezembro de 2012

AS ALTURAS


AS ALTURAS

 

 

É como as pessoas da Ribeira chamam ainda hoje ao planalto aonde chega aquele plano inclinado que sobe não subindo, desde a beira-mar até à Relva Grande, Moinho do Loução e Vale de Águia da Serra.

Daí se vislumbram telhados, hortas e os alinhamentos sinuosos de freixos e amieiros, desde a Foz da Perna Seca, pela Ribeira de Odeceixe até ao Selão. Paisagem emoldurada pela Fóia pintada de um ligeiro azul cinza aparentemente eterno.

Quando, pela azinhaga das Quintas passava ao Mar Alto, continuando por aquela planura toda, Moinho da Moita acima, Monte do Portela até ao moinho da Relva Grande verdadeiro marco paisagístico e caminheiro, chegado ali, lembrava-me sempre da gente da Ribeira dizendo: - Além nas alturas…

A partir dali, enquanto caminhava atrás do “Santinho”, o meu espírito parava na contemplação da serra, que pregueava a paisagem negra dos estevais matizada nos corgos pelo esverdeado dos medronheiros. E atirava-me no vazio, voando por sobre as Entre-águas, Cerro do Gato, Taipas, até à Foz de Joana Mendes e ladeira das sete envoltas, numa evasão imaterial, gozando antecipadamente as sombras tão convidativas da ribeira e a frescura cantante da água brincando no cascalho. E cantava aquela cantiga que o pai nos tinha ensinado:

 

 - Água clara da corrente

   que vais tu a lamentar?

   São murmúrios da nascente.

   Ou pressas de ir ter ao mar?

 

A canção, que mais tarde soube ser, um poema de Afonso Lopes Vieira, traduzia tão bem, a alma daquela ribeira que eu aprendi a amar desde menino.

 

           - Lava a roupa à lavadeira,

põe a azenha a trabalhar;

nunca pára no caminho

com pressa de ir ter ao mar.

 

E mergulhava o espírito naquela tela viva, cenário de tantos momentos da minha pré-adolescência, emoldurada à esquerda pela Serra dos Algares, princípio da cordilheira que se estende pela Brejeira adiante, até onde o sol nasce; à direita, pelas duas maminhas da Serra de Marmelete e pelas alturas do Rogil a descambar para Aljezur.

E pairava demoradamente, em toda a leveza do meu ser sobre os corgos, seguindo deliciosamente nas suas voltas e envoltas, as pontas dos amieiros até à Ribeira da Perna da Negra, para seguir,

 

- Correndo, correndo

  Sem nunca parar,

  Em busca do rio

  a caminho do mar.

 

Sonho muito frequentemente que voo. Umas vezes, como se fosse um pássaro; outras, em corpo e alma numa plenitude sensorial.

Chego a pensar, que os meus primeiros voos foram ensaiados sobre esta serra, enquanto caminhava atrás do burrinho, os pés nus, na poeira ocre do caminho.

 

04DEZ85

A GIBOIA E O HIPOPÓTAMO


 

 

A GIBÓIA E O HIPOPÓTAMO

 

 

Naquele dia o pai Hipopótamo, habitualmente sisudo, estava radiante dando voltas e mais voltas às cinco palmeiras do seu acampamento, enquanto a mãe, roncava baixinho aconchegando o seu bebé de cinquenta quilos acabadinho de nascer.

Depressa se espalhou a notícia do feliz acontecimento, e até o Sol apareceu a espreitar surpreendido, por cima da floresta.

Ora o nascimento do bebé foi um acontecimento extraordinário, pois naquele ano já o tempo das chuvas ia adiantado e ainda não tinha nascido nenhum filhote de hipopótamo. Para festejar, os pais convidaram todos os animais da ilha de Uno.

Todos… não foi bem assim, pois esqueceram-se da vizinha Gibóia, que morava nas palmeiras mesmo por cima do acampamento.

Não foi por mal, não! Mas no meio de tantas preocupações, há sempre alguma coisa que fica esquecida.

Acontece, que a Gibóia não esteve com meias medidas e ficou muito ofendida.

“Que não havia direito, assim e assado… que até o Porco-Espinho fora convidado, e a Gazela, e o Lagarto, e a Formiga… Sim, até a minorca da Formiga! Mas não, o assunto não ficava arrumado, não senhor!

E então resolveu vingar-se.

Os convidados continuaram a chegar com prendas para o recém-nascido;

O Porco-Espinho trazia um alfinete para as fraldas, a Formiga trazia um grão de arroz, a Abelha uma gota de mel, e assim por diante, cada um com aquilo a que dava mais valor.

Então, silenciosamente como só as cobras são capazes, a Gibóia deslizou tronco abaixo até ao chão, resolvida a abocanhar aquele pitéu tão tenrinho. Foi-se chegando, chegando…

Já se encontrava atrás da mãe e faltava só o “salto de uma cobra” para apanhar o petisco. Encolheu-se para tomar balanço e atingir a presa.

Um, dois, e…três! Foi como uma mola esticada de repente. CATRAPUZ!

Catrapuz, não! Porque o salto não chegou ao fim. A ponta da sua cauda ficou presa.

- Ai ai, minha cauda! – Gritou ela aflita enquanto se virava e dava de caras … com quem?

Bom! É que o senhor Hipopótamo andava por ali no meio dos convidados, a ver se estava tudo bem, quando avistou a intrusa e percebeu num instante, o que ela se preparava para fazer. Um, dois, e…três! Pisou-lhe o rabo.

E aí vai ela, a Gibóia, a correr ao longo da praia gritando:

- Ai quem me acode, pisaram-me o rabo! Ai ai, quem me acode?

Correu gritando e encontrou um Rochedo, que era o mais antigo habitante da ilha.

- Que foi Gibóia, porque gritas?

- Foi o Pescabalo que me pisou, e a dor não passa.

- Mas porque faria ele isso?

- Bem, isso é cá comigo.

- Ai é? Então morde na cauda até doer muito, que a dor da pisadela passa.

A cobra assim fez, mas a dor não passou, e lá foi ela veloz pela orla da floresta ao longo da praia.

Lá mais adiante encontrou um Poilão, que é a árvore maior que todas as outras.

- Que foi Gibóia, porque gritas?

- Foi o Peixe Cavalo que me pisou, e o Rochedo disse para eu morder a ferida, mas a dor não passou.

Mas o que foi que tu fizeste ao Hipopótamo?

- Não tens nada com isso.

- Ah, não? Então foge mais o depressa que puderes, que a dor fica para trás.

E lá foi ela mais depressa ainda, mas a dor não a largava.

Pouco depois encontrou o Fogo que andava a pastar no capim seco.

- Que foi Gibóia, porque gritas tanto?

- Foi o Cavalo-Marinho que me pisou, e corro a ver se a dor fica para trás mas não fica. Que hei-de eu fazer?

- Olha, eu não sei, mas além naquele palmar está muita gente junta, pode ser que alguém te cure.

Então a Gibóia, chegou a um acampamento onde havia muitos animais, ainda encandeada pelo Fogo e quase virada do avesso pelo cansaço.

O chefe do lugar perguntou-lhe:

Então Gibóia, o que foi que te aconteceu?

Ah, foi um monstro que me pisou a cauda, a dor não passa e eu não sei que fazer.

- Mas que fizeste tu para seres tão maltratada? Vá…conta lá!

Empertigando-se, humilhada e enraivecida ainda, quase esquecida da dor, disse despeitada sem perceber com quem estava a falar:

- Eles não me convidaram para a festa e eu ia comer-lhes o filho para me vingar.

- Ah, foste tu, bicho mau? Pois primeiro pisei-te o rabo, agora piso-te a cabeça. - Disse o pai Hipopótamo caindo-lhe em cima.

A Gibóia, que tinha dado a volta à ilha sem o saber, nunca mais se queixou que lhe doía a cauda.

 

Bissau 1980

Fernando Fonseca

 

UM DOCE CHEIRO A VERDE MAR


UM DOCE CHEIRO A VERDE -MAR





Tinha arrefecido bastante, antes ainda que o sol mergulhasse lá em baixo no mar envolto em névoa, como acontece quando o Jordano mergulha no latão o ferro incandescente moldado na bigorna.

A noite apanhou-me a meio do brejo, silenciosa, como se ralos e mochos tivessem adivinhado a invernia. Estiquei o passo procurando não sair do carreiro, na escuridão entrecortada por aquele pedaço de crescente, que espreitava fugazmente entre os retalhos das pesadas nuvens. Nem as rãs, que cantam antes da chuva, se faziam ouvir nos charcos que salpicavam o alagadiço dum lado e outro da vereda.

Gotinhas frias, picavam-me o pescoço aquecido pelo esforço da caminhada e as pernas abaixo dos calções de cotim coçado.

O monte ainda era longe, e em menos de meia hora não me punha lá. A não ser…Comecei a correr, tanto mais que o vento tinha descido das alturas a açoitar as urzes os tojos e os pastos do brejo, carregando forte a chuva que me repassava a camisa de fioco, gotejava no rosto a escorrer-se pelo pescoço e costas, explorando o corpo ensopado.

Ao chegar à gurita no alto do cerrinho, vi lá em baixo na varja as manchas escuras do monte e da arramada, como dois bichos adormecidos ao lado da ceara de centeio.

Chegando ao rossio, hesitei junto ao forno para, decidido, disparar feito num pinto na direcção da arramada.

O vaqueiro já tinha cévado devido ao temporal e acabava de passar a laçada pelos cornos da última vaca.

Olhou-me espantado. Depois presenteou-me com um sorriso desfalcado, alumiado aos laivos pelas labaredas que devoravam apetitosas, estaladiços cepos de sobro no canto preto da arramada.

- Oh, Ti Manel Domingos. Estou todo molhado.

Sem pressas nem demora, deu-me a manta de lã comprada na última feira da Barreira com estima no gesto. Pendurou-me os calções e a camisa num varal perto do fogo, as pontas apoiadas em dois mochos, enquanto enrolado na manta, mergulhei na palha de um fardo desmanchado. Puxei os joelhos para os queixos, meti as mãos entre as pernas, a cabeça tapada, o bafo a aquecer-me o casulo.

Os estremeções tornaram-se mais raros. Só ouvia os bagos da chuva no telhado, o vento lá fora e as cornadas das vacas de encontro às manjedouras.

Nisto, um cheirinho a erva cortada estrapassou a palha e a manta. Cantando, o Ti Manel Domingos homem solitário, cortava o ferrejo para o gado na foice quebrada presa ao esteio polido e envernizado pelo uso. Cantava ao ritmo do sopro da foice traçando o centeio verde.

Quando aqueci lembrei-me de quando, num meio dia soalheiro da primavera passada, mergulhei com a filha do moiral nas ondas do centeio crescido, fazendo gaitas com os entrenós, chupando o suco adocicado dos caules mastigados, esfregando os nossos corpos nus no despertar de gozos desmedidos, mordiscando e rindo em surdina, num leito húmido de frescura, perdidos e achados na verdura daquele mar salpicado de papoilas, longe da estrada, perto do paraíso.


Fernando Fonseca 1985

O SACRIFÍCIO


O SACRIFÍCIO

 

 

 

Acto sagrado, o sacrifício.

O conceito invoca a existência ou a suposição de alguma dor dignificando-a pelo altruísmo que o motiva.                                                                                                                                                                                                                      

Sacrifício é um sofrimento a que nos sujeitamos voluntariamente, quando consideramos que há algo mais elevado que nele condiciona a sua salvação. Algo que amamos ou a que atribuímos uma importância superior.

O sacrifício honroso nunca é feito para defesa de causa própria. Pelo contrário, entende-se como um acto heróico, uma abnegação, ou seja; Uma situação em que o agente se apaga, na medida em que não é o usuário directo das suas consequências. O sacrificado tem de acreditar que não vai sofrer em vão. E, acreditando, vai até às últimas consequências podendo a sua abnegação,” in-extremis”, consumar-se na oferta da vida pessoal.

 

 

A Santíssima Trindade

 

Em 1954 era eu um menino da 3ª classe, idade em que o nosso universo se circunscreve à família e aos vizinhos, ao território cenário das nossas brincadeiras, e onde têm função de matéria-prima as incursões do saber, quer vinculadas pelos pais, quer, como é o caso que se segue, pelos professores da Primária.

É um microcosmos sempre completo mas em expansão permanente.

Por esses anos, foram tornados públicos dois projectos a nível nacional que representaram no nosso país, a dualidade complementar do poder de então. – O político e o religioso: A Ponte Salazar e o Cristo-Rei.

O primeiro, que só estaria concluído 10 anos mais tarde, era uma afirmação do Poder fascista apoiado na modernidade tecnológica (embora pela mão dos engenheiros americanos). Sendo uma decisão do governo autocrático de Salazar, não precisou de convocar os cidadãos para a sua realização. Era o Estado Novo, exibindo um imagem de vigor que oferecia ao povo apático a ligação entre as duas margens de Portugal.

Deveria ser entendida como uma benesse, quando na realidade o povo já a tinha pago com os impostos, com o sacrifício involuntário da sujeição ao obscurantismo, e pela exploração sistemática das colónias.

O segundo, concluído antes num lugar onde se imporia sobranceiro à ponte e à cidade a configurar um padrão do divino na figura de Jesus já não crucificado como foi tradição durante vastos séculos, mas com a abertura de um abraço como que a prometer a vida eterna. O Cristo-Rei a imperar sobre o poder terreno como que a afirmar que a humildade, a submissão e a aceitação pacífica das desventuras, haveriam de ter um prémio final, lá, onde supostamente viriamos a ser todos iguais como vinho dissolvido em água.

Foram os anos a seguir à grande exposição do Império na vizinha Belém.

O que desse ano melhor conservo na memória, foi a mobilização que a minha professora imprimiu aos alunos (como as professoras das outras classes à semelhança do que ocorreu no país inteiro) para que durante aquele mês, todos fizéssemos um sacrifício diário para ajudar a construir o monumento no Pargal de Almada.

Tanto quanto me lembro, pedia-se a cada menino que levasse uma moedinha, mas precisarei de me socorrer da memória de condiscípulos para ter a certeza. Penso que foi a primeira vez que ouvi a palavra “sacrifício”.

Aqueles que não pudessem levar a moeda teriam, no início de cada aula, que dizer em voz alta como se de uma profissão de fé se tratasse, que actos tinham concretizado, a que se pudesse chamar sacrifício.

Não me lembro com clareza de nenhum exemplo concreto. Não certamente que algum dos meus colegas tivesse “ajudado alguma velhinha a atravessar a rua” exemplo que não se adequaria à realidade da aldeia, mas os sacrifícios relatados não andariam muito longe disso. Seria mais do género: “carreguei a infusa da água à minha avó” ou “ descasquei as batatas à minha mãe” ou, “ levantei-me mais cedo para dar comida ao gado”. Tenho ideia de que uma parte das que ouvi me pareciam invenções de recurso, enquanto no meu pensamento ocorria uma tempestade de ideias na tentativa de construir um testemunho que me parecesse credível.

Agora o Fonseca”. Dirigi-me ao estrado, virei costas ao quadro e ouvi sair-me numa voz precipitada: “Hoje bebi o café sem açúcar”. “Muito bem!”- Ajuizou a D. Maria da Graça, enquanto eu me esgueirava para a carteira, tentando perceber se tinha de facto ou não, posto açúcar na infusão de cevada torrada. É que na minha casa nem sempre havia dinheiro para o comprar.

Só muitos anos depois percebi que não era com aquelas moedinhas nem com os nossos “sacrifícios” que se pudera construir o Cristo-Rei. O que se estava a construir era o reino de Cristo no íntimo mais profundo de cada uma daquelas crianças. Todos aqueles sacrifícios tinham sido inúteis, como coisa de fancaria.

 

A Troica

 

Voltam agora decorridos sessenta anos, a pedir-se aos mesmos meninos e a outros meninos seus filhos e netos, que voltem a fazer sacrifícios. Se dantes foi por uma certa e restrita espiritualidade, agora já não se trata de uma causa espiritual. O que está em causa é a sobrevivência de um sistema que se revela querido de alguns e madrasto para quase todos. Quando foi para fazer obra, o povo foi mantido arredado, para tornar mais expressiva a magnanimidade do ditador. Agora pede-se ao povo que legitime a destruição do estado social, que assista ao renascer de “apartheids”, e que aceite a perda de uma soberania que foi progressivamente empenhada em actos nunca referendados.

Manipulado por um meticuloso processo de amansia, o povo entrega o que tem e o que não tem. Deu o trabalho em troca de um pagamento cujo valor não foi por si estipulado, e vê agora esse pagamento ser levado para dar cobertura a ladrões e àqueles que sem arriscar nada de seu, esbanjaram em supérfluas auto-estradas e outras megalomanias, aquilo que era de todos.

Somos pressionados todos os dias com o argumento de que temos de nos sacrificar para salvar Portugal. Querem fazer-nos acreditar que somos, cada um de nós, os responsáveis pelo “estado a que isto chegou”, com a estranha fórmula de que antes, tínhamos de trabalhar mais para salvar a economia, e agora, para a salvar, tiram a centenas de milhar, a oportunidade de trabalhar. Fica fora deste sacrifício, uma classe de intocáveis, coniventes políticos, e ocultos manipuladores dos cordelinhos do Poder, que durante todo o processo construíram património “legalmente” à custa daqueles a quem se pede o sacrifício, segundo o “efeito de Mateus” (… Ao que tem, dar-se-á e terá em abundância. Mas ao que não tem até o que tem lhe será tirado).*

Na verdade, não é sacrifício nenhum, antes, de facto, uma espoliação. Sacrifício existe de motu próprio, e faz-se quando se crê na sua utilidade.

Assistimos aos mais directos responsáveis pelo processo do ”pagamento da dívida” afirmarem que o povo está solidário com as opções dos governantes. Dizem-no aos microfones sempre que a seu lado está um político estrangeiro. Dizem-no, e tal como esses estrangeiros sabem que não é verdade.

Não é verdade porque o povo sabe que a austeridade não belisca os privilegiados.

O povo sabe, que a ausência de corajosas medidas de estado para resolver os problemas não se albergam na mente dos governantes. Sabe que são vendidos ao estrangeiro por tuta e meia os poucos recursos que podem sustentar a soberania de Portugal. Que a electricidade só custa metade daquilo que pagamos à EDP. Que esta, por sua vez entrega dividendos dos lucros a uma empresa estadual chinesa. Que o governo Português deu dinheiro aos angolanos para nos comprarem um banco pela décima parte do valor que lhes ofereceu. Que há gente vencida pela doença por não ter dinheiro para os remédios. Que os jovens licenciados são aliciados para fugirem do país. Que há universitários a abandonar os estudos porque as propinas são caras. Que os livros do ensino básico têm o preço de artigos de luxo. Que os bancos emprestam a quem joga na bolsa e negam ajuda às PMEs. Que há cada vez mais desempregados. Que aos desempregados são cortados os subsídios de desemprego, apesar de terem feitos os descontos de lei. Que em breve, cada vez mais cidadãos sem trabalho e sem qualquer rendimento serão forçados a roubar para alimentar os filhos. Que temos um Presidente da República, que em vez de impor ao governo a resolução dos problemas que afectam os cidadãos, repete apelos em público para que os ricos sejam caridosos para com os pobres. Que o valor das reformas é contraído e vem aí o aumento das rendas, e dos transportes. Que a ministra da Agricultura quer criar uma taxa gémea, duplicando a que existe via IVA, para os alimentos. Que ganhando menos, os contribuintes vão pagar impostos mais elevados.

Eis porque em Portugal, e já agora na Grécia, na Irlanda, em Espanha, na Itália, e em breve na França, os povos não fazem sacrifícios. São sacrificados

  

  Sacrificados para o engrandecimento dos “Tio Patinhas” deste mundo.

Estes e os seus mandatários, têm em marcha um projecto para levar a mão-de-obra ao limiar da escravatura, quando um dia de trabalho não valer mais que uma simples côdea de pão. O seu paradigma é o de concorrer com os chamados países emergentes, baixando as condições de vida ao nível do dos trabalhadores da India e da China. Sabem que as suas fortunas só crescerão, multiplicando o número de pobres.

Ironia; O Sistema Democrático colocou no poder, as sanguessugas da Democracia. Não conseguirá o voto apeá-las.

Acredito que está a surgir uma nova classe de miseráveis que por força das circunstâncias protagonizará uma revolução violenta a nível internacional. E dentre esses ascenderão os nomes de heróis, que por não terem mais nada em que acreditar, avançarão para o extremo sacrifício.

* - Anselmo Borges D.N.21ABR2012

Fernando Fonseca

Algés 21ABR2012

 

 

Nota – Este texto foi enviado via NET para os meus contactos com a seguinte introdução:

Caro(a)s amigo(a)s,

A constatação dos factos actuais só por si, não nos permite uma crítica substantiva, se não tivermos como referência experiências anteriores.

Nessa perspectiva, relancei um olhar para 60 anos atrás, e com a memória desses tempos debrucei-me sobre a questão dos sacrifícios a que nos forçam para salvar a economia nacional e desse modo (dizem), assegurar a soberania de Portugal.

Em quatro páginas A4 submeto o resultado a vossa apreciação

Um abraço.

                               Editado no blogue “wwwpontodeinterrogação.blogspot.pt”

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O GATO SONHADOR



O GATO SONHADOR
conto





- Era uma vez um gatinho sonhador que resolveu ir esperar pelo dia seguinte, E disse aos outros gatinhos:
- Vou esperar por amanhã.
Os outros responderam: - Esperar por amanhã? Quem te disse que o amanhã ia chegar? Que saibamos, não recebeste carta, não vimos ninguém dar-te recados, nem ouvimos anunciar na rádio… vais esperar? E se ele não vier?
O gatinho respondeu: Vai chegar, sim. Eu sei.
E sem ligar mais aos gatos cépticos que estranharam aquela ideia tola, procurou um lugar alto, disposto a esperar. Quando o amanhã chegasse, haveria de ser o primeiro de todos a vê-lo e, recebendo-o, dar-lhe as boas vindas. Haveriam de ficar grandes amigos.
Esperou, esperou, até depois de silenciarem os ruídos da festa que soavam mais espaçados e longínquos. As luzes do bairro apagaram-se quando as pessoas já dormiam, e o gatinho, solitário no lugar escolhido para a espera sobranceiro aos telhados da cidade, depressa se viu envolvido pela noite mais linda que alguma vez imaginara.
O mundo era um conjunto de formas indefinidas e dispersas mergulhadas na penumbra, e por cima, como uma campânula gigantesca, a abóbada do céu estava salpicada de milhões e milhões de estrelas a piscar, umas tão brilhantes que pareciam ali mesmo ao alcance dos seus bigodes, outras nas profundidades do espaço, quase imperceptíveis, parecendo apagar-se por momentos.
O gatinho gostou de imaginar que era único e que as estrelas naquela noite, tinham-se juntado todas para ver o gato que acreditou na vinda do amanhã, contrariamente aos outros que se contentavam com o dia presente. Como aquela gatinha preta que com o seu sotaque, que ele não sabia se era brasileiro ou se era moçambicano, lhe disse: - Ispérá pelo amanhã? xiu… pode ispérá sentado. Sentádjinho ‘viu?
Ir ao encontro do amanhã, predispor-se para receber o dia seguinte, era coisa que não passava por cabeças com juízo. O futuro haveria de chegar, quer se fizesse ou não alguma coisa por isso. Porquê ralar-se? – Era o que pensava toda a gente.
As estrelas são eternas. Nelas está todo o passado e todo o futuro. Foi o que o gatinho sonhador sentiu que as estrelas lhe contavam, não com palavras mais ou menos miadas, mas com pensamentos que se formavam dentro da sua cabeça.
“ Pode ispérá sentado; sentádjinho ‘viu?” martelou a voz da gatinha preta, quando o sono lhe começou a afectar a vigília e as pálpebras se lhe tornaram pesadas. Mas ele não queria adormecer. Não queria perder o espectáculo da noite. E se, quando o amanhã chegasse, o encontrasse a dormir? Tinha vergonha de que isso pudesse acontecer.
Foi quando se lembrou de ouvir dizer, que a gata de Joana Mendes com um olho dorme e com o outro caça ratos.
O nosso gatinho, passou a alternar ora fechando o olho esquerdo, ora o olho direito, como forma de resistir ao sono. Mas fechar os dois, não!
Sabia que os morcegos e as corujas eram os únicos que não dormiam e, ah! As ratazanas, que corriam silenciosas no assalto aos contentores do lixo. Mas esses, não queriam saber mesmo nada do amanhã. Para eles a noite poderia durar infinitamente.
Nestes pensamentos, não se apercebeu de que muito discretamente, os limites da paisagem a leste foi saindo da penumbra, e no céu, lá muito baixo, o contorno do mundo começou a ser desenhado por uma leve claridade.
Tomou consciência da mudança, quando na retina do seu olho vigilante, chocou um brilho como se fosse um diamante a cortar o torpor que teimava em fazê-lo adormecer. Excitado, levantou o olhar para o horizonte e viu, nada mais, nada menos, do que o planeta Vénus que ele julgou ser a mãe de todas as estrelas. E viu-a subir pelo céu, as outras a desviarem-se à sua passagem.
Algo de importante estava a acontecer. O gatinho pôs-se nas quatro patas, alerta, sem o menor resquício de sono. A sua alma cresceu, (até então, ele nem sabia que tinha alma), uma alegria inigualável inundou-lhe o focinho. Atrás da mãe de todas as estrelas, o céu foi ficando azul, de um azul lindíssimo luminoso e puro, que lhe provocou uma onda de emoção e alegria.
O Dia Seguinte estava a chegar e ele assistia à sua chegada. Ruídos lá em baixo na cidade, indicavam que já havia gente nas ruas, mas para aqueles, era um dia igual aos outros, rotineiro, chato, sem nada de novo.
No alto, o gatinho, julgou ouvir toques de trombeta instantes antes de o sol lhe acariciar os bigodes, o seu calor a subir-lhe o focinho, entre os olhos, a passar-lhe o alto da cabeça entre as orelhas, percorrer-lhe o lombo com uma carícia que o fez arquear-se, sentindo em cada pêlo um raio de sol, até aquela manchinha branca na ponta da cauda erguida.
Só então fechou os olhos para gozar plenamente a carícia do seu novo amigo.
Então, reparou que o amanhã já era hoje; que todos os dias, antes, foram futuro.
Da sua pose heróica desceu tranquilamente, percorrendo os caminhos que o sol ia alumiando e aquecendo. E juntos, entraram na vida da cidade.


Fernando Fonseca

ÀS QUINTAS E DOMINGOS OS PÁSSAROS NÃO CANTAM



ÀS QUINTAS E DOMINGOS OS PÁSSAROS NÃO CANTAM


O Tio Zé Augusto, com os seus setenta e um anos feitos em Maio, é um homem feliz.
Nascido e criado ali no sítio, tirando a ida às sortes praticamente nunca saiu do seu lugar, com as abas da serra a nascente e do lado do sol posto, o mar.
A planura toda (a charneca, dizia-se antes), conhece ele bem, entre Odeceixe e o Cavaleiro, e se a sua experiência não lhe permite opinião, sobre o ser e o viver de outros lugares, do seu chão, das suas vaquinhas, das sementeiras e dos matos, conhece ele as virtudes.
“Na natureza não há nada que não tenha uma serventia” diz ele a propósito da coisa que para nós, pareceria mais insignificante.
Maravilhado com a sua erudição simples e telúrica, levei-o um dia num passeio, Relva Grande acima, a descer as ladeiras “a pique” por caminhos de medronheiros, até às várzeas da Foz da Perna Seca, vis-a-vis com a Fóia, agigantada de tão perto.
“ Ah, punhão! Como é que esta gente pode viver aqui no meio destas ladeiras, só brenhas no fundo destes barrancos?” e, homem acostumado a virar com a aiveca,  as areias leves da charneca, acrescentou: “ A mim, nem que me pagassem bem pago!”.
Voltamos às Taliscas à boca da noite. Taliscas é o monte do Tio Zé Augusto e da Tia Rosa, mulher engenhosa como há poucas. O forno do pão foi ela que o fez com as suas mãos, perante o olhar céptico de muita gente.
O monte deles, casinha pequena à dimensão do casal, está enquadrado numa clareira do Barranco do Carvalhal sumido da planura. A quinze metros da casa no final do declive, passa o ribeirinho entre canaviais, vimes e seisseiros. Na encosta soalheira é ladeado por uma faixa de montado e na ladeira sombria, abundam os carvalhos e os medronheiros. Na zona de contacto do barranco com a charneca, estevais com tês metros de altura.
O Barranco estende-se cerca de oito quilómetros por ali abaixo até ao mar, acabando num areal desassombrado, proporcionando uma faixa em que as características da serra e da planície se interpenetram, dando origem a um sistema complexo com abundância de exemplares tanto de flora como de fauna, com destaque para raposas, texugos, e doninhas, ouriços cacheiros, toupeiras, e lagartos, cágados, cobras de água, bordalos e rãs, etc., etc., etc. e onde as aves residentes são muitas e variadas, podendo observar nas épocas próprias, pintassilgos, pardais, piscos e felosas, cartaxos, cotovias, arvéolas e picanços, (duas espécies) pegas, gaios, cucos e rolas, corvos, gralhas, e abelharucos em bandos coloridos e barulhentos, referindo em tempo frio os abibes, algarvões e abetardas, e tantos mais.
Mas de todos, aquele que o Tio Zé Augusto mais gosta, é o rouxinol que todos os anos ali em frente no canavial, passa as noites inteirinhas a cantar e a cantarolar um repertório sem fim, alegrando as noites monótonas dos ralos, salpicadas do pio dos mochos e exclamações das corujas, atenuando as insónias próprias da idade, e sobretudo, para contento daquele homem simples e bom, que conhece a terra com o ninguém e a ama com devoção.
Assim todos amassem a terra e aquilo que nela vive, e haveria muitos mais “Barrancos do Carvalhal”, para alegria dos que tivessem a bênção de lá viver, e para encanto dos que a visitassem.
Infelizmente, entre Sines e Aljezur, não conheço outro reduto da Natureza tão rico, um dos poucos ecossistemas que poderá ainda considerar-se intacto.
Nunca falei disso ao Tio Zé Augusto, mas de cada vez que pela abertura da caça, ouço ecoar pelo barranco os disparos consecutivos das caçadeiras contra tudo o que voa ou que se esgueira entre pastos, tenho um desgosto enorme e um receio ainda maior, de que este pedaço de paraíso esteja condenado a desaparecer, como acontece a tantos outros de que já só se pode dizer “Era uma vez…”
Continuarão o Tio Zé Augusto e a Tia Rosa a ouvir todas as noites o seu amigo rouxinol?
É que aos domingos e quintas-feiras, já não se ouvem os pássaros cantar.

Zambujeira do Mar 08DEZ87


Passaram vinte anos.
À data deste escrito ainda não tinha começado a invasão de estufas