terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A OLARIA DO PINOTA


Ficava ao pé do Largo da Loja. A olaria já não existe, e o próprio largo foi “absorvido” pelas três ruas confinantes.
Foi, durante muitas gerações, uma olaria de referência entre as cinco, que permaneciam activas nos anos 50 do século XX.
Tinha três divisões: a oficina, o quintalinho e o forno.
É difícil dizer qual das três tinha mais encantamento

A oficina

Na rua, encostadas às paredes, alinhavam-se por vezes as peças meio secas para curar melhor.
O Campinhos chegava com o burro carregado de torrões numa golpelha de palma, abria as duas portadas da oficina entrando com o animal até ao meio da casa, e metia ombros de um dos lados; a carrada dava uma cambalhota e os torrões precipitavam-se no lajedo de xisto com uma trovoada baça.
À volta desse monte de barro seco, a garotada era bem aceite pela gratuita colaboração; sentados num mocho ou num torrão maior a fazer de banquinho, martelavam com um maço até desfazer o granel, e era ver quem despejava mais alcofadas na celha do canto, junto à parede da bancada. Cheia a celha, vazavam-se umas quantas talhas de água e a terrugem ficava ali a ensopar de um dia para o outro.
Por norma, era o Campinhos quem, depois de se descalçar, arregaçava as calças até ao joelho, prendendo-as com os atilhos das ceroulas. Depois, recuando uns passos, iniciava uma corrida súbita para, com o balanço, saltar até ao topo do torreão de barro retirado da celha.
Era um gozo ver, como os seus pés brancos depressa ficavam enlameados, enquanto o calcanhar direito sempre à volta do montão, ia calcando o barro em rodadas sucessivas numa sequência espiralada de rastos até que, sobre o lajedo, se formava uma enorme filhó.
Então, com a foice quebrada, aplicava uma série de cortes até ao chão, separando a filhó em pedaços que, enrolados, eram de novo postos em pilha.
Quando havia pressa no barro, os dois oleiros, o Heitor que era o mestre e o Campinhos, davam-se o braço esquerdo e rodavam cada um por seu lado, calcando, calcando e cantando, até que a bolacha os obrigava a ficar afastados do centro. Outra filhó, e o barro ficava amassado.
 O que mais me intrigava era o facto de ser o Campinhos, filho do patrão e por isso patrão também, mas quem mandava era o Heitor, o empregado. Baralhava-me aquilo de o empregado mandar no patrão. Devia ser por isso, que por vezes havia grandes zangas entre os dois, mas que não duravam muito. E quando passavam voltava o Campinhos, chapéu cinzento puxado para a nuca, para a bancada ao pé da janela com uma enorme leiva vermelha, a separar as pedrinhas do barro que se acumulavam na sua frente como um monte de caganitas, cantando cantigas bonitas, enquanto o Heitor fazia magia com as mãos, o barro escorregadio a rodar entre os dedos compridos.
Primeiro era a pela, atirada com precisão para o centro da roda. Depois, molhando as mãos no alguidar da lambujem, humedecia e apertava o barro que se esgueirava como uma enguia a libertar-se da vontade do homem. No momento preciso ele mudava a posição das mãos e com o polegar e o indicador, fazia uma covinha no alto, que se alargava e afundava, criando uma parede entre o indicador e o dedo médio.
A pela, já forma viva rodando sempre, criava bojo ou adelgaçava caprichosamente, pela acção das mãos do oleiro. Uma, no fundo do buraco a moldar-lhe a alma; a outra, por fora a acariciar-lhe o corpo.
“É um vaso. É um barrilinho. É um mealheiro” – pensava ansioso, com esperança de que os meus pensamentos pudessem influenciar na decisão da forma definitiva.
Um arame fino a trespassar a base junto ao rodízio, dava por acabada a obra.
Era um encanto ver aquelas mãos grandes, toscamente enxugadas num trapo velho a pegarem nos púcaros, nos vasos e nas enfusas, com uma segurança que fazia esquecer o aspecto gelatinoso de há pouco, colocando-as na tábua que uma vez cheia, o Campinhos levava para secar no canto sombrio da olaria longe das correntes de ar.

O quintalinho

Saindo da oficina para as traseiras, era o quintalinho, passagem única para o forno.
Do lado de lá, um muro de taipa esboroado por passagens clandestinas dos moços que iam às sorvas na cerca das Manuelas. À esquerda, uma parede de pedra e barro dava para o quintal do sapateiro. Do lado direito uma passagem larga para o casarão do forno. Ao meio uma única árvore, a romãzeira.
Não era grande coisa a romãzeira, mas tinha encanto. De copa bem feita, quando vinha a primavera, cobria-se de folhinhas verde-claro, a contrastar com o avermelhado das paredes de taipa. Chegando Maio, enfeitava-se com barretinhos encarnados orlados por uma franja rosada, e nós, às escondidas dos oleiros apanhávamos as flores e no rechonchudo dos cálices, desenhávamos à esferográfica olhos, narizes e bocas, inventando personagens de fantasia, bonecos cabeçudos, anões com o corpo de barro. Mais tarde viriam as romãs de gengivas à mostra, poucas, sobreviventes dos nossos inconscientes desbastes.
E o Campinhos:
- S’eu apanho algum a mexer nas romãs, faço-lhe um casaco de lambujem.
A gente às escondidas ria-se com os anõezinhos de corpo de barro já seco.
Pela Páscoa ganhei um pacotinho de amêndoas num contracto ao Manelinho Gaspar. Comi algumas; as outras, pu-las num ninho fingido com ervas secas, a fazer de conta que era de pintassilgo. Chamei o meu irmão:
-Anda ver um ninho que é só meu. Já tem ovinhos.
Ele subiu a romãzeira. Espreitou e disse:
-Olha, já nasceram, anda ver.
Apressado, pus um pé na forca mais baixa e balancei o corpo para o alto. As formigas tinham dado com as amêndoas. Saltei para o chão e atirando torrões de barro seco persegui o meu irmão que ria de gozo.
- Já nasceram. Já têm penugem!

O forno

Era sombrio, chão puído coberto de palhas, restos do empalhamento das carradas de loiça levada para as feiras das redondezas.
O forno era como eles chamavam a todo o casarão; armazém, secagem de Inverno, casa da lenha e o forno propriamente dito. Ali se alinhavam as loiças à espera da cozedura. Assentes em pranchas de solho, enfileiravam-se as talhas, as enfusas e os barris para água, os mealheiros, fogareiros e assadores de castanhas, os vasos, as salgadeiras e os potes. Ao lado, as travessas, panelinhas, pucarinhos e alguidares para vidrar depois da primeira cozedura.
As peças iam-se acumulando até que um dia, chegava a carrada de lenha vinda das brenhas. Ele era tojo, carqueja, esteva, urze, e tudo o que desse boa chama.
Chegava numa carreta, e os homens com forcados de pau polidos pelo uso, fincavam as pontas a meio da carrada e todos à uma, forçavam e voltavam a forçar balançando cada vez mais, os pés assentes na parede atrás deles, até que o monte de lenha desabava de encontro à parede da olaria, entupindo a rua e deixando-a cheia de picos que por norma se me cravavam nos pés nus, razão porque o meu pai se zangava com “aqueles malandros”.
O Heitor arrumava as loiças secas na câmara de cozedura, por cima da fornalha, até ao anoitecer.
Nesses dias jantava-se apressadamente. O Campinhos já tinha metido a lenha toda do lado de dentro do gradeado, à volta da cova por onde se descia para aquele inferno.
A Tiznoveva, morava na casa ao lado da minha, e era a única mulher da aldeia que fumava. Sentava-se no portal a enrolar a mortalha, mandava o Chico trazer um tição para acender o cigarrinho, e a quem comentasse mandava para o inferno. No Largo da Loja morava a Tia Rosa, que era beata e também falava no inferno, mas por muito desprezo e tons de heresia com que o pintasse, nunca me provocou qualquer receio.
É que o inferno, onde diziam que as chamas devoravam os corpos debaixo da terra, esse inferno, onde afinal eu não via corpos nenhuns, era mesmo ali em frente da minha casa, na olaria onde o Heitor cozia as loiças. Eu não tinha dúvida nenhuma de que o inferno fosse uma coisa boa, embora os espinhos da lenha se me espetassem no rabo quando me sentava na beira da cova. Como era bom o calor que se libertava daquele lugar, aquecendo a gaiatagem e alguns mendigos que por ali passavam no Inverno por ocasião das cozeduras.
O oleiro, de forcado em punho, dois ferros pretos e aguçados na ponta da comprida vara, enfiava molhos e molhos de lenha pela goela esfomeada.
Eu olhava para a cara dele, magra, comprida, chapéu velho em bico a cobrir os cabelos suados, pérolas de reflexos vermelhos a escorrer-lhe pela testa curtida rodeando as sobrancelhas pelas fontes abaixo, a infiltrarem-se entre o pescoço e a gola da camisa. As pálpebras, semicerradas numa careta que tentava fugir ao calor e ao encadeamento.
Eu gostava do senhor Heitor; ele sabia como ninguém, fazer magias no barro, só ele é que sabia enfornar, mais ninguém metia o braço esticado no forno aceso para sentir se a loiça tinha a conta certa de calor.
E ali, naquelas noitadas de Inverno, ao pé dele, o frio não se atreveria a chegar-me aos ossos.
Mais uma forquilhada de tojo para o inferno. E o Heitor, assumia naquela sua figura entre o heróico e o fantasmagórico, entre a luz e as trevas a expressão de um diabo a alimentar as chamas do Inferno.
Um Diabo bom, e um Inferno quentinho.
Era por isso que eu não levava a sério as orações da Tia Rosa nem as pragas da Tiznoveva.

Fernando Fonseca
O BURRO CARDO






Foi numa daquelas tardes luminosas, quando o sol parece de prata e os pinos dos pinheiros se esticam pelo descampado doirado pelo restolho velho cheio de cardo.
Ali, numa brancura de areia, rés-vés com a caruma envernizada, a gente descansava. Numa fogueira de pinhas, assávamos um pique de toucinho com a grossura de uma mão de travessa, espetado numa forquilha de esteva apanhada ali à mão, naquela corgazinha que dá para o barranco. A gordura pingava do pique com pequenas explosões ao cair nas brasas de pinha brava.
Toucinho daquele, assado, com pão mole, só quando o rei faz anos, (ou quando as galinhas tiverem dentes) lembrei-me de como dizia o Zé Candeias.
Era uma tarde em que as cigarras serram o ar aos bocadinhos e não fica nenhum para se respirar.
Foi quando apareceu aquela invasão lá embaixo na curva, ao pé dos pinheirinhos redondos, criando uma fina nuvem de poeira ocre a pairar suspensa, sobre o verde do pinhal.
A algazarra cresceu à medida que o magote avançava. Eram três homens de burro, mais um velho e um moço a pé, tapados de pó que não se viam as caras, agarrados às cordas, arrastados em trote forçado, aos tropeções.
A gente não precisava de sair dali para ver o espectáculo. Eles é que se vinham aproximando.
Um burro cardo, sempre a puxar no seu trote ligeirinho saiu do caminho, cortou a ponta do restolho, atravessou a pelada de areia, abrandou o trote e veio a passo, parar a duas braças do Zé Pedro que segurava na mão o pão mole comprado no forno da Praia. Esqueci-me da fogueira e fiquei com o espeto de toucinho nas mãos a olhar, ora para os homens que ficaram quedos, ora para o Zé Pedro que olhava sorridente para o burro. Olhei-o também. Nunca tinha visto um animal assim; um cinzento liso, lindo, pelo curto, uma comprida lista negra escarranchada nas cruzes; corpo roliço, como um porco de engorda. Bicho forte! Não trouxera ele todos aqueles homens e burros a reboque desde não sei onde, que eu não os conhecia?
-É bicho que nunca trabalhou. Tem mais força que duas juntas. Compri-o pensando q’o amansava, mas já tiri daí o sintido.
Isto disse o homem que saltou para o chão, enquanto limpava a testa e o pescoço com um lenço de riscado dos grandes, como aqueles que o Zé Pedro vendia.
Olhei de novo para o Zé Pedro. Estendeu o pão para o burro e perguntou-lhe:
- Gostas de pão? Toma lá. – Aproximou-se do animal com uma confiança tão grande que ele nem se mexeu. Parecia ter havido ali um assombramento que fez os homens parecerem árvores num dia de calma.
E o Zé Pedro a falar com o burro. A oferecer-lhe o meio pão com uma mão e a atrever-se com a outra para o pescoço do animal. As orelhas, mexeu-as ele para a frente, primeiro uma, a seguir a outra e depois para trás baixando-as até às crinas.
-Ai que ele morde! – Pensei eu. Mas o bicho aliviou a baixadura das orelhas.
O Zé Pedro:
- Gostas de pão, gostas? Um bichinho bonito como tu, tão luzidio, com um passo tão certinho, gostas de pão e de festinhas, não é verdade? – Dava-lhe uma palmada suave mais adiante. – Seu maroto. Tu não és burro não! Burrinho lindo é que tu és, mas burro, não. Vá, prova lá do meu pão. – A mão direita a chegar-lhe até à espádua. – Vês como é bom o pão de trigo? Foi o Ti Joaquim que o fez e aquilo é boa gente. Lindo bicho, tu sabes bem do que gostas, não é verdade?
Aí, o bicho cheirou melhor o pão, abriu a boca pela esquerda e mordiscou a côdea.
- Além de esperto, és bem-educado, menino bonito! - A mão avançou abrindo caminho ao braço que descansou suavemente no lombo roliço.
O cheirinho do pão fresco chegava até onde eu estava, fazendo-me crescer água na boca, e o burro abriu a dele, desta vez segurando bem forte um pedaço do tamanho de um punho, forçou e partiu, começando a comer. 
- Estás a ver como é bom, meu anjinho? Vamos ser amigos.
A mão dele já corria todo o corpo do animal do pescoço às ancas, do lombo à barriga, numas carícias entremeadas com palmadinhas amistosas.
Não me contive e comecei a bater palmas. Comecei, disse eu. Senti-me como se o tivesse feito numa igreja, tão grande era o silêncio e o respeito daqueles homens à frente de um milagre assim. O Zé Pedro a abraçar o burro; o burro a comer pão e a virar a fronte para o seu novo amigo.
Foi quando reparei nos olhos do animal. Antes, eram só aquelas carochas pretas na cabeçorra cinzenta, mas vistos assim na serenidade daquele quadro vivo, eram olhos a valer; eram duas janelas de meiguice coalhadas de azul aquoso como duas lágrimas suspensas, que lá no fundo, pareciam sorrir descontraídas de prazer com o pão e as festas no lombo todo.
O encantamento foi perfeito, até ao momento em que o Zé Pedro quebrou a tensão com uma daquelas gargalhadas que mais ninguém dava. Eram cataratas de riso que se espalhavam pelo arneiro, sonoras gargalhadas bem timbradas que repartiam o espaço à volta, penetrando na paliçada do pinhal.
Os homens contagiados, fizeram coro rindo também num relaxamento benfazejo, enquanto o burrinho começava a mordiscar junto com os outros, os pastos secos do restolho mais próximo.
- Quanto quer por ele? – Perguntou o tendeiro.
- Três gramáticas e está o negócio fechado.
O sol já ia baixo. Os homens afastaram-se ensaiando a história que se iria desdobrar em mil versões correndo seca-e-meca. Voltei a atear fogo a duas pinhas para continuar o assado, com aquilo a martelar-me a ideia a compasso.
- Três gramáticas! Quanto será isso?
O Zé Pedro ouviu-me a falar sozinho. Percebeu o balbuciar e explicou-me:
- Quer aprender a falar com os burros.

Fernando Fonseca

DÍVIDA SOBERANA



GOSTARIA QUE ESTE ESCRITO fosse mais do que um simples desabafo, e nesse sentido, algo mais consistente do que os habituais desabafos “de café”.
Nessas tertúlias libertamos um pouco da energia contida, diria até, comprimida pelo Sistema político/administrativo que vigora em Portugal, agora sob o consulado de Passos Coelho.
Dizem que desabafar faz bem, mas sinto que sentirmo-nos bem, no âmago desta realidade não nos faz bem nenhum. Eterniza-nos a sonolência.
Os meus companheiros de desabafos revelam aspectos da crise que entretanto me passaram despercebidos, e conjuntamente, sentimos que o descontentamento geral tem aumentado. Todos dizemos que “isto” bateu no fundo, mas acabamos sempre por saber que existe uma infinidade de fundos que se subpõem, revelados a cada suposto limite. A conclusão repetida a cada encontro, é a de pena por não aparecer ninguém suficientemente carismático e credível, capaz de corporizar todos os nossos anseios, com capacidade de organização, de acção e de liderança de uma equipa de homens e de mulheres, absolutamente impolutos por provas dadas, agentes de um renovado paradigma Democrático.
Todos conhecemos figuras que ganharam o respeito geral e que aceitaríamos tomarem em mãos colegialmente, os destinos deste país, e em última instância devolver o orgulho, que ao nosso povo tem sido e continua a ser sistematicamente roubado.
Quando tentamos perceber, por que razão essas figuras detentoras de valores já postos à prova recusam alinhar no mundo da Política, a ideia, é de que não querem misturar-se na “porca da política” onde ficariam inevitavelmente conspurcados. Talvez porque no íntimo, cada um saiba que a sua acção seria inconsequente num oceano de águas sujas, onde imperam as corrupções nas diversas modalidades, os lóbis, os compadrios, e a gratidão por favores ou ajudas recebidas.
NUM ESTADO inundado por “políticos” formados exclusivamente pelos aparelhos partidários, em conformidade com as sensibilidades e interpretações programáticas de quem ciclicamente chega ao poder, conhecedores (?) somente, de itens seleccionados em função do voto, distantes das verdadeiras e prementes necessidades do povo para quem, em última instância deveriam governar. Actores numa política de catavento, feita em moldes de continuidade como quem navega sem bússola, incapazes de manter e muito menos melhorar as orientações do partido, e quando na oposição fazem inflamados discursos de contra maioria, fazendo-nos pensar, que no sistema de alternância partidária que lhes é tão caro, são criaturas de dupla personalidade.
Quem, com integridade de caracter se sujeitaria a um afogamento inútil neste oceano de invisíveis margens?
Faz-nos falta a nós cidadãos em Portugal, (vá lá saber-se porquê) a força anímica para unir vontades em torno de algo construtivo, de produzir uma dinâmica verdadeiramente revolucionária, (recordo Mohandas Gandhi). É que na ausência de tal capacidade a situação do povo e do país não tem saída.
Todavia, é forçoso reconhecer o significado e o valor das iniciativas populares, nomeadamente dos “indignados” que na Praça dos Restauradores, ousaram impor-se à esfíngica imagem governativa, mas cedo me pareceu, que a própria recepção dos líderes pelo Presidente da Assembleia da República, não passava de um sorriso de desdém mascarado de “audição da voz do povo”.
Como este, surgiu igualmente inspirado nas poderosas manifestações de Madrid, o grandioso movimento global de Indignação, de cariz internacionalista, como não podia deixar de ser face à realidade mundial dos problemas que a todos os povos afecta.
Mas esse movimento de protesto contra a exploração a que o Capital (vestindo agora a roupagem de Mercado), sujeita toda a população planetária, será sempre pouco menos do que inconsequente, se localmente não germinar uma inabalável e frutífera vontade de mudança.

EM DEMOCRACIA a razão de ser do Estado é o bem-estar e a segurança do povo. Quando os cidadãos têm cada vez menos pão, habitação mais precária, saúde cada vez mais cara, o acesso a educação pedagógica de qualidade lhes está dificultado, o Estado não tem razão de ser.
O modelo de Estado-Propriedade, com o poder centralizado num imperador, numa família, num ditador ou em oligarquias de índole diversa, é frequentemente proscrito ainda que só na palavra pelos líderes ocidentais, (veja-se a escandalosa relação com Khadafi) porque alegadamente assentam o seu poder numa negação dos direitos democráticos do povo.
Mas os mesmos lideres que se intitulam de democratas, são-no unicamente no momento do voto, expressão das vontades individuais genericamente “comprados” com as astronómicas despesas em campanhas eleitorais, (e, como tantas vezes todos assistimos na nossa terra, em troca de um frigorífico, da reparação de um caminho, ou da construção de uma marina, que ninguém quer).

Não é por acaso, que estes governantes perante as manifestações de descontentamento do povo, invocam o fantasma de uma potencial violência, perigosa para o “Estado Democrático”. Para o estado democrático, mas na versão daqueles que sustentam os regimes que se auto-intitulam de democráticos, e que de forma reptícia e continuada, vão promulgando leis e decretos, esses sim, geradores da verdadeira e mais traiçoeira violência a que o povo fica sujeito.
A lealdade que seria de esperar daqueles que mandatamos, esvai-se num virar de casaca, quiçá, revelador de má-fé.
Vêm agora sacar-nos, na modalidade de saque legal, o pouco que temos para pagar uma crise expressa na imagem de “Dívida Soberana”, de que não somos responsáveis.
Registe-se, que após a 2ª Guerra Mundial, gerações foram paulatinamente viciadas com um novo “ópio do povo”. Ópio camuflado de conforto ao alcance de todos, disfarçado de ”Qualidade de Vida”. Impingiram-nos a ideia sedutora de que todos poderíamos ser ricos. Ou que, não o sendo, parecer ser. A nova estratégia consistiu na invenção de “necessidades”, verdadeiros fetiches de um virtual desenvolvimento social. Os banqueiros, e atrás deles, grandes indústrias, hipermercados e um sem número de organizações, encontraram nesses promotores extraordinárias afinidades, e passaram a oferecer e muitas vezes a impingir créditos, sem se certificarem de que os destinatários tinham capacidade para os honrar. E se o fizeram, foi porque as situações de crédito mal parado a acontecerem, já estavam cobertas pelos lucros das vendas entretanto realizadas, sendo que as indústrias e os bancos se identificam em imensos “clusters”.
 É o caso exemplar da Alemanha, líder industrial da Europa que ganha com as vendas que faz para os outros países da União, e ganha com os juros do dinheiro que lhes empresta para essas mesmas compras. (Réplica actualizada do velho sistema Brasileiro em que os proprietários das roças vendiam os alimentos, as ferramentas e o vestuário aos seus trabalhadores, de tal modo que por muito que lhes pagassem, estes ficavam a dever cada vez mais ao patrão. É que o proprietário que detinha a única lei na roça tinha uma balança para pesar o que comprava e outra para o que vendia. E nem podiam os desgraçados fugir ao jugo do patrão, porque eram de seguida caçados por serem devedores. Os que não eram abatidos, só se libertavam da dívida trabalhando sem receber durante o tempo que o proprietário determinasse. Uma dissimulada forma de escravatura). Tal qual como o Estado que conhecemos; Exige pagamento por conta de um rendimento a acontecer, cobra IVA de quem ainda não ganhou, arresta os bens de quem não ganha o suficiente para pagar impostos, e não paga, ou paga tarde o que deve a terceiros que lhe prestam serviço.

VÊM ASSIM SAQUEAR-NOS de uma parte do nosso rendimento, que, segundo uma lei não revogada (*) é inalienável, por ser componente do património adquirido pelo nosso trabalho.
Levam-no, porque o país deve milhares de milhões ao estrangeiro.
Se uma parte dessa dívida, se reporta às tais “necessidades” que nos foram impingidas, para nos iludir com o estatuto de povo pertencente ao “Pelotão da Frente” como na época se dizia, reza o ditado que, “Quem o alheio veste na praça o despe”, pelo que não estamos colectivamente inteiramente isentos de responsabilidades.
Em contrapartida, as astronómicas fatias da dívida, como tem sido bastamente denunciado nos últimos tempos e não desmentido, devem-se a obras exorbitantes insuportáveis para as nossas posses, e aos desfalques sucessivos dos oligarcas e apaniguados, que sacaram milhões de empréstimo à CGD ou ao BPN. Face à falência deste, consequente de saques sucessivos, decidiu o Governo cobrir o desfalque com o dinheiro que era dos cidadãos, dando espaço aos autores para aumentarem o seu património, investirem nos paraísos fiscais, ou de modo mais fútil e tolo, simplesmente o esbanjarem.
Houve um 1º ministro que com prosápia, afirmava nunca ter dúvidas e raramente se enganar. Ensinou à generalidade dos portugueses que era possível viver sem trabalhar, instalando na mente do povo a ilusão de que a Europa era uma inesgotável cornucópia.
Concretizou essa tese, pagando aos pescadores para não pescarem, aos produtores de leite para abaterem os efectivos nas produções, dando subsídios a quem arrancasse olivais e vinhas. Elogiado como um bom aluno “da Europa”, criou as condições para que os outros países nos viessem vender as suas produções. Mandou construir centenas de quilómetros de auto-estradas, assegurando que seriam o grande motor para o desenvolvimento da economia nacional e assim nos colocar entre os mais ricos da Europa.
O que se confirmou foi que as ditas auto-estradas, figurando em 1º lugar entre as redes viárias europeias, serviram e servem, nada mais, nada menos, do que para sangrar ainda mais o interior, das populações residentes, levar mais depressa aos grandes centros de consumo aqueles que ainda lá permanecem, e permitir os que ainda têm dinheiro façam o seu turismo “cá dentro”.
É assim que funciona este modelo de Democracia. Olhando para o umbigo, o governante eleito decide segundo o seu imaginário, quantas vezes acolitado pelos apaniguados das grandes empresas de construção, que no processo são os únicos a arrecadar incontáveis rendimentos.
A TRISTE REALIDADE é que o povo nunca foi chamado a pronunciar-se sobre os maiores sorvedouros de dinheiro, mas ao povo que os responsáveis por tais empreendimentos, símbolos de progresso mas que não produzem riqueza, vêm buscar, quais vampiros, doses sucessivas do sangue vital. Nunca, por nunca, eles arriscam qualquer parcela do seu património pessoal, e havendo prejuízos, estão escudados por lei contra a reposição de valores. A gestão danosa pelos políticos nunca é punida e os seus autores continuam inimputáveis, sendo irrisório castigo pelo voto.
Outros, que reconhecidamente desfalcaram o erário público e a economia nacional constituindo casos de polícia, auto-exilam-se periodicamente fora do alcance da lei portuguesa, ou se refastelam confortavelmente nas mansões adquiridas com dinheiro fácil, enquanto são organizados processos infindáveis a concluir em véspera de prescrição do crime.
Outros ainda, vêm os processos arquivados não porque não haja matéria para os levar a tribunal, mas porque as provas foram obtidas ilegalmente. Assim, o acto ilegal da obtenção de provas, lava a veracidade do crime de maior dimensão, cometido por outros mais poderosos.

DIZ O GOVERNO que para cumprir o plano da Tróica, os sacrifícios estão igualmente repartidos por todos os portugueses. Mentira; Ao sacrifício devastador de uns, corresponde um suave contratempo de outros.
Os 5% retirados a quem ganha mil euros, empurra-o inexoravelmente para a fome e para o abandono da casa onde abriga a família. Os 10% de quem ganha 15.000 euros, leva-o quando muito a prescindir de vinhos caros ou de comprar o novo BMW série 5 para o filho adolescente. E a vida de luxo obsceno, quando comparado com o quotidiano de quem vive do trabalho, continua como se tal contributo não existisse.
Dir-se-ia: “Os pobres podem passar fome porque já estão habituados. Coitadinhos dos ricos que ficam privados do seu champanhe preferido”.

A DÍVIDA SOBERANA, ainda não foi devidamente explicada ao cidadão comum.
O que é? Como se caracteriza? Portugal (nós) tem de a pagar, senão o quê?
Vem-me à memória o “Ultimato” inglês em 1890 a propósito do” Mapa Cor-de-Rosa”. Os ingleses intimaram Portugal a desocupar a faixa entre Angola e Moçambique. É fácil perceber porquê. Se por um lado, ao abrigo do célebre “Tratado mais Antigo do Mundo”, foi com tropas inglesas que os portugueses venceram os castelhanos por diversas vezes e mais tarde os invasores de Napoleão, por outro, o relativo fausto da Corte portuguesa era mantido com sucessivos empréstimos dos seus “primos” de Inglaterra. Tornando-se propícias as condições geoestratégicas na época, a Inglaterra reclamou “em espécie” o que considerava ser-lhe devido, ficando com os actuais territórios da Zâmbia, Zimbabué, e Malawi.
E se Portugal não pagar a dívida soberana? Quem são os credores? O FMI, e o BCE? Os bancos alemães? Os chineses, que nos últimos anos têm comprado dívidas soberanas em todo o mundo, como que a preconizar uma mais que provável hegemonia global?
Se aqueles que têm sustentado o nosso modo de vida “à rica”, não recuperarem o seu dinheiro e quiserem cobrar “em espécie” o que é que vêm buscar? Este jardim rectangular à beira mar plantado?
Que fará o Governo dessa altura? Entrega?
A estas perguntas que suponho, ninguém ainda respondeu, segue-se a noção que já é do senso comum, de que Portugal há muito deixou de ser um País independente.
Como pode reclamar-se independente um país, cujos governantes eleitos se deixam dirigir em nome da honra nacional, por um triunvirato que representa um Neo-Imperialismo ainda que, como tal não caracterizado? E que, carecendo absolutamente de qualquer representação democrática vem decidir entre outros assuntos, sobre aquilo que nos é mais caro, os rendimentos do trabalho, sem o qual não se consegue vive com um mínimo de dignidade?
Quem está disposto a suportar a humilhação, de ter um governo comandado por um “cônsul” às ordens de três estrangeiros?
Definitivamente, Portugal soberano e independente já não existe. Vivemos uma independência virtual com os destinos da Nação nas mãos destes políticos.
O que é que nos deixam para sentirmos o orgulho de ser portugueses? Vestimos uma “superior” nacionalidade europeia?
Os prometidos referendos foram-nos subtraídos como se fossemos de menoridade, e agora obrigam-nos paternalisticamente a assumir uma escolha, que não fizemos.
A EUROPA, que nos fizeram acreditar ser a Europa dos Povos, assume a sua verdadeira índole, que é a das multinacionais para quem os povos não são mais, do que um rebanho onde vão buscar a lã, a carne e em breve, até o estrume.
Que Europa queremos?
Parece que só os cidadãos podem reconstruir uma Europa solidária, justa e democrática, e só assim verdadeiramente forte. Se for essa a vontade colectiva dos povos europeus, perspectiva-se a essa acção um caminho difícil com muito sofrimento, pois os lobos exigem conservar o seu estatuto, manter o poder meticulosamente construído, e não aceitarão nunca uma equidade de direitos e de deveres.
Nunca o aceitarão, porque só pode haver ricos se houverem muito mais pobres.
Não esqueçamos que mil terão de viver na pobreza, para produzir um rico.
Até quando estarão os trabalhadores, os pobres e os despojados dispostos, a colaborar neste sistema?
É urgente um novo paradigma.
(*) – Dec Leinº 496/80 de 20Out, artº17
St Annes On The Sea
18Nov2011
Fernando Fonseca*

Estrada de Santiago

Nunca tinha visto uma noite de Novembro assim.
Ainda ontem caiu aquela carga de água que encheu os barrancos até mais não, arrastando cepos e canas, vergando silvados e canaviais, com uma fúria que força nenhuma deste mundo poderia arrostar. Fui dar uma volta pelo arneiro na esperança de achar algumas púcaras, aproveitando o lusco-fusco e a claridade daquelas nesgas de nuvens avermelhadas rasando o mar.
Ao subir a ladeirinha até às Pedras Pardas, fechou-se a noite na charneca e o cerro da gurita, tapadinho do negro das estevas ali ao lado, disforme, aprisionado na dimensão da noite. Procurei uma pedra que eu sabia estar algures por ali e sentei-me atirando o corpo num abandono, as costas no borne invisível.
Que noite! Pensei maravilhado. Ali na direcção de Marmelete, a meia altura do céu a estrela Sírius ofuscava com a sua claridade uma infinidade de outras mais distantes; também a meia altura mas para leste, o Setestrelo abrindo caminho a Orionte.
Na direcção do Cabo do Sardão, tão baixa como nunca vi, os pés de cadeira da Ursa Maior, convidavam a seguir com o olhar uma vertical até à Estrela Polar.
Da Lua, nem o sentido.
O céu estava tão salpicado que se viam estrelas quase a tocar na linha do horizonte. Parecia que o céu se apoiava na terra. O pisca-pisca de um jacto em altitude de cruzeiro, parecia seguir pela Via Láctea, tão luminosa, indeterminada.
Não bulia uma palha; e neste abandono benfazejo, dei comigo a ouvir lá longe muitos anos atrás, a minha voz de criança maravilhada com o espectáculo da noite, deitado nalguma eira de Agosto, enterrado em palha de aveia, relutante em me entregar ao sono, mais virado ao sonho alimentado pelas profundidades da noite insondável. Maravilhado como hoje, com o tecto mais rico que desejar se pode. E a memória de uma voz que fora a minha:
- Pai. Porque é que lhe chamam Estrada de Santiago? – E percorria-a com o olhar para norte, onde sabia ficar Santiago do Cacém.
- É dos tempos antigos, quando os peregrinos iam daqui para Santiago de Compostela que fica também para esse lado, mas já na Galiza em Espanha.
- Ó pai e as estrelas estão assim todas ao pé umas das outras? - Ou então:
- Quanto tempo demora um avião daqui até às estrelas? – Ou:
- Porque é que não se pode ir de avião? – E invariavelmente:
- A gente morria queimados antes de lá chegar?
Mas as caminhadas eram longas já que a vida dura nos obrigava a percorrer grandes distâncias, e a fadiga baixava-me suavemente  as pálpebras, e era já em sonhos que eu brincava com as estrelas escolhendo-as uma a uma, dando-lhe nomes inventados, até ter um saco cheio de pirilampos, e dizer com ternura ao meu pai:
- Tenho uma coisa bonita para ti.
Nunca uma noite de Novembro me tinha oferecido prenda como esta em forma de voz de criança curiosa, e a lembrança meiga do meu primeiro mestre; meu pai.
Respiro fundo. A pedra dura onde me recosto desperta-me chamando-me à realidade e ao presente. Mas a realidade é às vezes pouco consistente. E a prová-lo, aí está esta noite estrelada, as estrelas descendo à Terra, e a charneca desde o Brejão até ao Cavaleiro, salpicada de estrelas pousadas nos montes entre os pinhais, onde moram crianças que sonham com sacos cheios de pirilampos com nomes de estrelas, e com viagens espaciais.

Fernando Fonseca

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

CARNAVAL DE BISSAU - 1980


CARNAVAL DE BISSAU
1980


Já na véspera o alarido fora enorme.
A multidão agitada, gritando, cantando e dançando, uns para cima outros para baixo, enchia a Av. Amílcar Cabral.
Começou pelo meio da tarde quando o calor do sol amainou e as sombras das casas começaram a alongar-se pelo asfalto galgando o passeio do lado oposto. Só ao pôr do sol é que saí, passada a moleza da sesta. Levei a máquina fotográfica e ao dobrar para a avenida, perfilou-se na minha frente, um rinoceronte, graduado com cinco estrelas de general, corpo deformado, farda branca enchida com almofadas de pano.
Claro, era uma foto “da ordem”. Foi a primeira. A primeira de trinta e seis que se prolongaram pela noite, durante os ensaios para a grande marcha, para o desfile e o concurso.
Vacas brutas, rinos, elefantes cabeçudos, morcegos, etc. tal era a profusão de máscaras que subiam e desciam no meio de bajudas embranquecidas de pó de arroz. (um preto, quando quer fazer figura de palhaço pinta-se de branco) disseram-me.
O maior alarido era o dos brasileiros que andavam a tentar um Carnaval à brasileira. Fez-me lembrar o cozido; enfim, não toava!
As pessoas participavam dançando, cantando, rindo e metendo medos. Isso foi na véspera.
No dia dezanove, foi a recomendação:
- Olha. Tens que fotografar o dragão, o Cárter o Muzorewa e o Vorster.
Equipei-me com duas máquinas, a minha e a da Jaal, pois fui encarregado de fazer a cobertura daquela grande manifestação cultural QUE É o Carnaval de Bissau, afinal a única grande festa popular comum a toda a gente, inclusive aos muçulmanos, que apesar de considerarem o Carnaval uma festa de cristãos, não se esquivam ao espectáculo e muito menos negam um pé de dança nos bailes da folia.
Assim, saí na hora oficial da abertura. Os miúdos pela mão, encontramos o Dragão a sair do recinto onde foi construído fora do olhar dos “espiões”. Monstro verde, articulado, olhos vermelhos luminosos, garras em riste. (houve um primeiro que deitava fogo pela boca, mas foi destruído pela chuva do princípio do mês.
O cortejo dirigiu-se para a marginal onde outros grupos mais ou menos folclóricos se exibiam com as suas cores, cantos, danças, guizos, e muitos outros adornos com objectos surpreendentes.
Entre eles, o Ballet Okinca Pampa – animador cultural sem direito a prémio no concurso, um grupo de jovens balantas enlameados e cobertos de adornos de folha de palma entrançada dançava, junto do pedestal de uma estátua apeada, dando lugar ao renascimento vigoroso de uma cultura oprimida século a fio.
Enquanto estes grupos tomavam o seu lugar eis que chegou com grande algazarra o grupo do “Desenvolvimento Rural”. Sensação, curiosidade, emoção e medo. Traziam consigo vivos, um crocodilo e duas gibóias. Punham-nos no chão e a malta fugia dando espaço aos bichos inofensivos, de tanto espantados.
Pelo meio disto, um grupo de cineastas francófonos recolhia imagem e som.
Diriji-me para a avenida novamente. Aí, uns dez grupos tinham já tomado posições e preparavam-se para iniciar o desfile. Tinha passado cerca de uma hora. A avenida Amílcar Cabral estava cheia dum lado e doutro. Mascarados brincavam com os espectadores ou corriam a juntar-se aos grupos que se concentravam no Pindjiguiti.
O primeiro grupo, piroso, o único piroso, iniciou a sua marcha. Meninos e meninas, vestidos de azul muito alinhados a querer parecer marjoretes, seguidos de um Sandokan mais a sua Mariana. Depois, dois noivos, atrás desta uma “odalasca” despida com um tecido preto transparente, bunda rolando.
Felizmente bem situado o cartaz; CARNAVAL 80.
Só atrás do cartaz é que vinha a telúrica cultura popular, a autenticidade da gente da Guiné, pretos, brancos, mestiços, intérpretes de uma mesma acção. Procurei captar estas imagens únicas e irrepetíveis, ora baixando a máquina ao nível do chão, ou subindo as acácias da avenida para obter as panorâmicas possíveis.
Cada vinte metros mais para cima, mais gente ladeava o percurso. Na entrada da Praça dos Heróis Nacionais, no triângulo de acesso à rotunda as pessoas amontoavam-se, europeus quase na totalidade de máquinas em punho.
Fascinado mais pela quantidade de espectadores que pelo desfile, capturei essas imagens enquanto segui, rápido até ao estrado em frente do Palácio Velho onde esperava, importante, o júri. Um grupo cantava, enquanto não chegava o desfile.
Chegou. Ou melhor, foi chegando. Aplausos. Comentários. O apresentador começou a aquecer a garganta; a garganta e o ânimo.
O primeiro grupo apresentou-se e o júri votou:
 - Tantos pontos pelo grupo! Tantos pela canção! Tantos para a máscara mais original! Podem seguir. Até à Mãe de Água, senão ficam desclassificados! Intransigentemente!
Seguem-se o segundo, o terceiro e o quarto grupo, quase sempre diferentes. Igual, só o entusiasmo, a folia! Caras pintadas, cabeças cobertas com vacas brutas características dos Bijagós, hipopótamos, elefantes, dragões, pelicanos crocodilos, tudo feito com papel de sacos de farinha moldados em molhado sobre moldes de lodo. No meio deles, muitos “Patetas” e um Super-Pateta. O anti herói, promovido a herói.
Durante cinco horas e meia foi o mesmo desfilar de cor, de música, movimento, engolidores e cuspidores de fogo, um tractor rebocando seis atrelados carregados de bailarinas no meio de enfeites de palmeira e de casotas construídas em crintim, simbolizando a criação de farmácias pelo país fora.
Um avião chegou, todo forrado de lenços coloridos como os que as mulheres usam, encimado pela bandeira da jovem Guiné. De dentro saíram cinco personagens mascarados, cada um deles representando uma figura importante.
A noite entretanto caíra havia horas. A iluminação da praça dava agora ao espectáculo um efeito completamente diferente, realçando só o colorido mais vivo no meio da massa  indiferenciada que, apesar de tudo, palpitava sempre.
Na curva da rotunda apareceu em dada altura, um cartaz monumental. Nele a frase: “CARNAVAL ANTI IMPERIALISTA”.
Foi então que se distinguiram as figuras que agitaram a multidão. Cárter, com a maleta dos “DIREITOS HUMANOS” a abarrotar de dólares, e um ajudante que carregava nos braços a Bomba de Neutrões. Junto dele, subservientes, Muzorewa e Vorster. Uma figura de Hitler, sob o cartaz, “DEUS NO CÉU, HITLER NA TERRA”. Com eles, uma figura minúscula que escangalhou muita gente a rir. Spínola, com o seu conhecido gesto de “MEU POVO”. Que pandilha!
Seguiam-nos muitas dezenas de mascaras representativas da bicharada mais variada.
A multidão, na ânsia de melhor ver apertava, obrigando os da frente a invadir o espaço do cortejo. O júri, mal podia observar, e o locutor, excitado, gritava palavras de ordem anti-imperialistas.
Finalmente seguiu o grupo depois de obter a melhor classificação nos três géneros considerados.
Chegou a informação de que ainda faltavam catorze grupos. Acabaram por desfilar todos, a multidão sem arredar pé.
Faltavam cinco minutos para as nove quando, cerca cinco horas depois, o último grupo desfilou na antiga Praça do Império, sob o monumento agora encimado pela estrela do PAIGC.
Não havia, quem não reconhecesse a grandiosidade do desfile. Superou todas as expectativas. Ali mesmo, meia hora depois, estavam apuradas as classificações.
Primeiro prémio individual: - Viagem aos Jogos Olímpicos de Moscovo.
Primeiro prémio de grupo: - quarenta contos.
Houve prémios até ao décimo classificado.
Fiquei fatigado depois de tirar cerca de quarenta fotos por hora. Seis rolos e meio de “slides”.
Depois do jantar, havia bailes de máscaras programados em diversos lugares da cidade.
Disse que estava cansado, mas com o entusiasmo da festa, da grande manifestação colectiva e espontânea, decidi mascarar-me também. Pintei a cara e saímos para a rua ao encontro dos amigos.
Foi o CARNAVAL 80 DA GUINÉ BISSAU.

O BANQUETE DA ABELHINHA


O BANQUETE DA ABELHINHA

Certo dia a Abelhinha arranjou nova casinha.
Assim que se instalou e a despensa arrumou, com favos de mel a recheou.
E exclamou:
- Tenho tanto mel e amigos, nenhum!
Apareceu então a Formiga Rabiga que a cumprimentou:
- Bom dia Abelhinha. Que linda que é a tua casinha! Dás-me um pouco do teu mel?
A abelha respondeu:
- Dou sim. Anda para a mesa e vamos provar. – E cantou - Amigos, não tinha nenhum. Melhor do que isso é ter um!
Preparavam-se para o banquete quando chegou a Borboleta Careta que e cumprimentou:
- Bom dia Abelhinha. Que linda que é a tua casinha! Dás-me um pouco do teu mel?
A abelha respondeu:
- Dou, pois! Anda provar o mel! E cantou. – Melhor que ter um amigo é ter dois!
Preparavam-se para o banquete, apareceu o Colibri Piripipi, que saudou:
Bom dia Abelhinha. Que linda que é a tua casinha! Dás-me um pouco do teu mel?
A abelha respondeu:
Dou sim! Senta-te connosco. Já tenho dois amigos, vês? E canto: - Mas melhor do que dois é ter três!
Preparavam-se para o banquete quando chegou o Ratinho Fininho. Cumprimentou:
- Bom dia Abelhinha. Que linda que é a tua casinha! Dás-me um pouco do teu mel?
A abelha respondeu:
- Dou, sim! Come que já está no prato. E cantou: - Melhor que três amigos é ter quatro.
Preparavam-se para o banquete quando chegou o Ouriço Roliço. Cumprimentou:
- Bom dia Abelhinha. Que linda que é a tua casinha! Dás-me um pouco do teu mel?
A abelha respondeu:
Claro que dou! É grande a alegria que sinto. E cantou:- Melhor que ter quatro amigos é ter cinco!
Preparavam-se para o banquete quando chegou a Raposa Rabosa. Cumprimentou:
- Bom dia Abelhinha. Que linda que é a tua casinha! Dás-me um pouco do teu mel?
Já tens tantos amigos!
A abelha explicou:
- Claro que dou! Mas olha que amigos não se fazem com leis. E cantou: - Há pouco tinha cinco amigos, contigo já são seis. Entra e prova o mel.
Preparavam-se para o banquete quando apareceu o Texugo Labrugo, que disse:
- Hum! Sinto um cheiro doce no ar! O que é que estão a preparar?
Responderam todos em coro: - Um banquete de mel para amigos.
E a Abelhinha: - És servido?
Então, o malcriado do Texugo Labrugo avançou, foi directo à despensa que desarrumou, mordeu os favos que estragou, comeu todo o mel que se entornou, lambeu o que sobrou, mais ninguém o provou e, pronto, acabou o conto

Recreado a partir do conto russo, “A mosca labrosca”
St.Annes on The Sea
16Nov2011
Fernando Fonseca

MINHA AMIGA, A PRINCESA





Minha amiga a princesa




I



Tenho uma amiga princesa.

O interessante é que só eu sei que ela é princesa. É um segredo tão bem guardado, este que agora revelo, que tenho dúvidas de que ela própria o saiba; que o saiba conscientemente, porque além dos conscientes, há saberes que residem na índole das pessoas como se se albergassem fora do conhecimento, e que só se revelam de modo intuitivo.

A minha amiga talvez não saiba aquilo que é, ou…que foi, não sei bem. Tem um porte digno, supremo e tranquilo que só tem quem foi bafejado com o dom da perfeição. Um porte, ou melhor a emanação de uma essência, que nenhuma varinha de fada má consegue extinguir, ainda que o esconjuro malfazejo consiga mudar a forma, induzir o esquecimento ou remeter para sonos intermináveis.

Guardião até hoje, de um segredo que me foi revelado nas profundidades do seu olhar de uma beleza mansa e doce, na suavidade do seu deslizar como se o chão mais íngreme, mais não fosse que um alcatifado de diáfanas nuvens, decidi hoje, que a omissão da sua história, seria o agravar de uma injustiça imbuída de maldade que se abateu sobre a minha grande amiga.

II

Era uma vez uma menina, princesa de condição, nascida num palácio construído pela Natureza, tendo como tecto a mais cintilante incrustação de jóias nascidas na vastidão do Universo, dispostas por mestre ourives em sugestivas constelações, imensas galáxias e nebulosas de sonho.

Muitos foram os músicos que tentara em vão, reproduzir a música que se libertava no canto das aves que a embalaram no seu berço perfumado.

E a Menina Princesa, que cresceu em ambiente de harmonia, de arte e amor, caracterizava-se por ter uma personalidade de cuja essência se reflectia uma sensação de paz e tranquilidade que naturalmente se contagiava a quem dela se aproximasse. Curioso é, que essas qualidades eram, por quem as recebia, passadas a quem não tinha a possibilidade de ver e ouvir aquela menina para quem solidariedade e amor, eram os primeiros atributos de um espírito elevado.
As pessoas tocadas, começaram a acreditar que os bens materiais eram meros instrumentos para elevar a dignidade de todas as pessoas sem excepção, e que o mundo era o lar que deveria ser amado, como se fora a mãe de onde tudo brotou. E que o estatuto dos dignitários, só se justificava, como o de detentores da responsabilidade para assegurar essas duas dimensões; A dignidade dos homens e o culto pelo Mundo-Mãe.

Mas na sombra da dissimulação e da lisonja, escondia-se uma rainha que adorava jóias diferentes, jóias arrancadas com estertor e sangue de escravos, ao ventre da Mãe-Mundo, e se inebriava na adulação de quem queria favores seus. Percebendo que a corte dos seus bajuladores era cada vez menor, decidiu um dia mandar fazer uma plástica para dissimular as feições que deixavam ver a bruxa má que era, mandando construir em seu lugar o rosto de uma menina de aparência ingénua e beleza cerácea, e pediu para ser recebida pela princesa.

A Princesa tinha sido informada pelos seus amigos mais próximos, que a rainha preparava algo de mau contra si e aconselharam-na a evitar a entrevista. Mas ela, que acreditava que a bondade e a inteligência poderia surtir um efeito neutralizador da maldade e até, colocar uma semente de bondade no coração da bruxa, recebeu a rainha.

A megera trazia consigo para oferecer, uma rosa amarela lindíssima que exalava um perfume etéreo e tão doce, que não deixava sentir o nódulo de mistério e de maldade no seu âmago.

Quem oferece uma flor cortada do seu caule, está a oferecer inseparavelmente, um prenúncio de morte.

A Princesa aceitou a flor, e mal os seus finos e delicados dedos a aproximaram do nariz para melhor sentir o seu aroma e simultaneamente manifestar o seu apreço pela oferta, todo o palácio foi inundado por tão intenso clarão, como se uma estrela gigante vermelha tivesse explodido, estendendo o seu fulgor sobre o tapete do tempo até aos insuspeitados confins do cosmos.




O esquecimento penetrou na alma de todos os que estavam na sala, percorrendo um por um todos os neurónios, anulando as memórias vivas numa assinapse geral.

Cada um dos presentes foi transformado num animal diferente. Em vez da menina lindíssima a fazer lembrar um anjo de luz, estava agora no centro da sala uma vulgar gatinha parda e branca de neve, com uma pequena mancha amarela no focinho, a assinalar o breve toque da rosa no nariz da Princesa.

III

Um dia, já lá vão dezasseis anos, deram-me para criar, uma gata ainda juvenil.
Hoje, estava o sol a despontar no pinhal e a entrar-me pela fenda do cortinado, a minha gata, muito delicadamente subiu para a cama e veio acomodar-se maviosamente sobre o meu peito a três centímetros do meu rosto, como que a sugerir-me telepaticamente como o faz há muito tempo, que lhe quebre o feitiço e ali mesmo a faça de novo menina. Menina Princesa.

Mas eu tenho medo. Medo que o meu beijo, em vez de recuperar a menina, traga para o mundo uma anciã em final de vida.

É que uma era de corrupção de cobiça, de fanatismo por poder pessoal, de opressão de nações indefesas, de guerras cruéis e outros tantos delírios, espalha-se pelo mundo.

Receio que o seu coração não resista ao espectáculo deste ensaio de inferno.

Ou talvez… a sua beleza interior, faça renascer o amor…

Não sei.



Alte-12/01/2008
                                                                                             F.Fonseca

O GATO SONHADOR



UM GATO SONHADOR

- Era uma vez um gatinho sonhador que resolveu ir esperar pelo dia seguinte, E disse aos outros gatinhos:
- Vou esperar por amanhã.
Os outros responderam: - Esperar por amanhã? Quem te disse que o amanhã ia chegar? Que saibamos, não recebeste carta, não vimos ninguém dar-te recados, nem ouvimos anunciar na rádio… vais esperar? E se ele não vier?
O gatinho respondeu: Vai chegar, sim. Eu sei.
E sem ligar mais aos gatos cépticos que estranharam aquela ideia tola, procurou um lugar alto disposto a esperar. Quando o amanhã chegasse, haveria de ser o primeiro de todos a vê-lo, e recebendo-o, dar-lhe as boas vindas. Haveriam de ficar grandes amigos.
Esperou, esperou, até depois de silenciarem os ruídos da festa que soavam mais raros e longínquos. As luzes do bairro apagaram-se quando as pessoas já dormiam, e o gatinho sonhador, solitário no lugar escolhido para a espera, sobranceiro aos telhados da cidade, depressa se viu envolvido pela noite mais linda do que alguma vez imaginara.
O mundo era um conjunto de formas indefinidas e dispersas mergulhadas na penumbra, e por cima, como uma campânula gigantesca, a abóbada do céu estava salpicada de milhões e milhões de estrelas a piscar, umas tão brilhantes que pareciam ali mesmo ao alcance dos seus bigodes, outras nas profundidades do espaço, quase imperceptíveis, que por momentos pareciam apagar-se.
O gatinho gostou de imaginar que era único e que as estrelas naquela noite tinham-se juntado todas para ver o gatinho que acreditou na vinda do amanhã, contrariamente aos outros que se contentavam com o dia presente. Como aquela gatinha preta que com o seu sotaque que ele não sabia se era brasileiro ou se era moçambicano, lhe disse: - Ispérá pelo amanhã? xiu… pode ispérá sentado. Sentádjinho ‘viu?
Ir ao encontro do amanhã, predispor-se para receber o dia seguinte, era coisa que não passava por cabeças com juízo. O futuro haveria de chegar quer se fizesse ou não alguma coisa por isso. Porquê ralar-se? – Era o que pensava toda a gente.
As estrelas são eternas. Nelas está todo o passado e todo o futuro. Foi o que o gatinho sonhador sentiu que as estrelas lhe contavam, não com palavras mais ou menos miadas, mas com pensamentos que se formavam dentro da sua cabeça.
“ Pode ispérá sentado; sentádjinho ‘viu?” martelou a voz da gatinha preta, quando o sono lhe começou a afectar a vigília e as pálpebras se lhe tornaram pesadas. Mas ele não queria adormecer. Não queria perder o espectáculo da noite. E se quando o amanhã chegasse, o encontrasse a dormir? Tinha vergonha de que isso acontecesse.
Foi quando se lembrou de ouvir dizer, que a gata de Joana Mendes com um olho dorme e com o outro caça ratos.
O nosso gatinho, passou a alternar ora fechando o olho esquerdo, ora o olho direito, como forma de resistir ao sono. Mas fechar os dois, não!
Sabia que os morcegos e as corujas eram os únicos que não dormiam e, ah! As ratazanas, que corriam silenciosas no assalto aos contentores do lixo. Mas esses, não queriam saber mesmo nada do amanhã. Para eles a noite poderia durar infinitamente.
Nestes pensamentos, não se apercebeu de que muito discretamente os limites da paisagem a leste, foi saindo da penumbra e no céu lá muito baixo, o contorno do mundo começou a ser desenhado por uma leve claridade.
Tomou consciência da mudança, quando na retina do seu olho vigilante chocou um brilho como se fosse um diamante, a cortar o torpor que teimava em fazê-lo adormecer. Excitado, levantou o olhar para o horizonte e viu, nada mais, nada menos, do que o planeta Vénus que ele julgou ser a mãe de todas as estrelas. E viu-a subir pelo céu, as outras a desviarem-se à sua passagem.
Algo de importante estava a acontecer. O gatinho, pôs-se nas quatro patas, alerta, sem o menor resquício de sono. A sua alma cresceu, (até então, ele nem sabia que tinha alma), uma alegria inigualável inundou-lhe o focinho. Atrás da mãe de todas as estrelas, o céu foi ficando azul, de um azul lindíssimo luminoso e puro que lhe provocou uma onda de emoção e alegria.
O Dia Seguinte estava a chegar e ele assistia à sua chegada. Ruídos lá em baixo na cidade, indicavam que já havia gente nas ruas, mas para aqueles, era um dia igual aos outros, rotineiro, chato, sem nada de novo.
No alto, o gatinho, julgou ouvir toques de trombeta, instantes antes de o sol lhe acariciar os bigodes, o seu calor a subir-lhe o focinho, entre os olhos, a passar-lhe o alto da cabeça entre as orelhas, percorrer-lhe o lombo com a carícia que o fez arquear-se, sentindo cada pelo um raio de sol até aquela manchinha branca na ponta da cauda erguida.
Só então fechou os olhos para gozar plenamente a carícia do seu novo amigo.
Então, reparou que o amanhã já era hoje; que todos os dias, antes foram futuro.
Da sua pose heróica desceu tranquilamente, percorrendo os caminhos que o sol ia alumiando e aquecendo, juntos para a vida da cidade.

O BURRO CARDO




O BURRO CARDO

5H14m
Era daquelas tardes luminosas quando o sol parece de prata e os pinos dos pinheiros se estiram pelo descamado dourado do restolho velho cheio de cardo.
Ali, numa brancura de areia, rés-vés com a caruma envernizada, a gente descansava.
Numa fogueira de pinhas assávamos pedaços toucinho com a grossura de uma mão de travessa, espetados em forquilhas de esteva apanhadas ali à mão, naquela corgazinha que dá para o barranco. A gordura pingava do pique, com pequenas explosões ao cair nas brasas de pinha brava.
Toucinho assado daquele com pão mole, só quando o rei faz anosou pensei parafraseando o Zé Candeias, - quando as galinhas tiverem dentes” .
Era daquelas tardes em que as cigarras serram o ar aos bocadinhos e não fica nenhum para se respirar.
Foi quando apareceu aquela invasão lá embaixo, na curva ao pé dos pinheirinhos redondos, criando uma nuvem de poeira fina a pairar suspensa, sobre o verde claro do pinhal.
A algazarra cresceu à medida que o magote avançava. Eram três homens de burro, um velho e um moço a pé, agarrados às cordas e arrastados em trote forçado aos tropeções.
À frente, um burro cardo com cinco cordas à roda do pescoço, trote ligeiro suado e empoeirado, a cabeça fincada de lado, a arrastar os outros todos. E o burro, sempre a puxar, no seu trote ligeirinho, saiu do caminho, cortou a ponta do restolho, atravessou a pelada de areia, abrandou o trote e veio a passo parar a duas braças do Zé Pedro, que segurava na mão o pão mole comprado no forno da Praia.
Eu esqueci-me da fogueira e fiquei com o espeto do toucinho nas mãos a olhar, ora para os homens que ficaram quedos, ora para o Zé Pedro que olhava sorridente para o burro.
Olhei-o também. Nunca tinha visto um animal assim; cinzento liso lindo, pelo curto, com uma comprida lista preta escarranchada nas cruzes, corpo roliço como um porco de engorda. Bicho forte como uma mula. Não trouxera ele aqueles homens e burros todos a reboque não sei donde, que eu não os conhecia?
- É bicho que nunca trabalhou. Tem mais força que duas juntas. Compri-o pensando co amansava, mas já tiri daí o sintido. – Isto disse um homem que saltou para o chão limpando a testa com um lenço de riscado dos grandes, daqueles que o Zé Pedro vendia.
Olhei de novo para o tendeiro. Estendeu um pedaço de pão para o burro e perguntou-lhe:
- Gostas de pão? Toma lá. – Aproximou-se do animal com uma confiança tão grande que ele nem tugiu. Parecia que tinha havido ali um assombramento, que fez os homens parecerem árvores num dia de calma.
E o Zé Pedro a falar com o burro. E a oferecer-lhe o meio pão com uma mão e com a outra a atrever-se para o pescoço do animal. Mexeu orelhas; para a frente, primeiro uma, a seguir a outra, e depois as duas para trás baixando-as até às crinas.
- Ai que ele morde. – Pensei eu. Mas o bicho aliviou a baixadura das orelhas. E ele a falar com o burro.
- Gostas de pão, gostas. Um bicho bonito como tu, tão luzidio, com um passo tão certinho gostas de pão e de festinhas, não é verdade? – e dava-lhe uma palmadinha suave mais adiante. – Seu maroto. Tu não és burro, não! Burrinho lindo é que tu és. Mas burro não. Vá prova lá do meu pão. – E a mão direita a chegar à altura da espádua.
Vês como é bom o pão de trigo? Foi o Ti Adelino que o fez e aquilo é boa gente. Lindo bicho. Tu sabes bem do que gostas, não é verdade?
Aí, o burro cheirou melhor o pão, abriu a boca pela esquerda e mordiscou a côdea.
- Além de esperto és bem educado, menino bonito. – A mão avançou abrindo caminho ao braço que foi descansar suavemente no lombo roliço.
O cheirinho do pão mole chegava até onde eu estava fazendo-me crescer água na boca. O burro abriu a dele, desta vez segurando bem forte um pedaço do tamanho de um punho. Forçou e partiu, começando a comer.
- Estás a ver como é bom, meu anjinho. Vamos ser amigos?
Com a mão já corria todo o corpo do animal do pescoço às ancas, do lombo à barriga, numas carícias entremeadas com palmadinhas amistosas.
Não me contive. Comecei a bater palmas. Comecei, disse eu. Senti-me como se o tivesse feito numa igreja, tão grande era o silêncio e o respeito estampado no rosto dos desconhecidos, frente de um milagre assim. O Zé Pedro a abraçar o burro, e o burro a comer pão e a dar cabeçadinhas no seu novo amigo.
Foi quando reparei nos olhos do animal. Antes eram só aquelas carochas pretas na cabeçorra cinzenta, mas visto assim, na serenidade daquele quadro vivo eram olhos a valer. Eram janelas de meiguice, coalhadas de azul aquoso, como duas lágrimas suspensas, que, lá do fundo, pareciam sorrir descontraídos de prazer com o pão e as festas no lombo todo.
O momento fazia aquilo parecer uma aparição, até a tensão foi quebrada pelo Zé Pedro com uma daquelas gargalhadas que mais ninguém dava. Eram cataratas de riso a inundar o arneiro, sonoras gargalhadas bem timbradas que repartiam o espaço á nossa volta, penetrando a paliçada do pinhal.
O riso contagioso passou-se aos homens num relaxamento benfazejo, enquanto o burrinho foi mordiscar junto dos outros os pastos secos do restolho mais próximo.
- Quanto quer por ele? – Perguntou o Zé Pedro.
- Três gramáticas e está o negócio fechado.
O sol já ia baixo. Os homens afastaram-se ensaiando a história que se iria desdobrar em mil versões correndo seca-e-meca. 
Voltei a atear o fogo com duas pinhas, aquilo a martelar-me a ideia a compasso.
- Três gramáticas! Quanto é isso?
O Ensinador de Burros ouviu-me a falar sozinho. Percebeu o meu balbuciar e explicou-me.
- Ele quer aprender a falar com os burros.
6H35

28OUT86
Fernando Fonseca