quinta-feira, 24 de maio de 2012

FANTASMAS…




Manhã fria, ventosa.
O sol levantou-se há cerca de meia hora coado por ténues cortinas de nuvens dispersas num céu envergonhado do seu fraco azul.
Sentado no abrigo junto ao “Pier”, encasacado até às orelhas, recebendo os fracos raios de sol matinal, entrego-me a um abandono bem-fazejo, a mente intencionalmente desligada de qualquer pensamento objectivo como que a invocar uma sonolência inteiramente desnecessária.
De ambos os lados da construção em tijolo-burro, surgem os fantasmas tocados a violento e irregular vendaval proveniente de noroeste. Estico as pernas, apoio o calcanhar direito sobre a esquerda do outro pé e deixo que se imponha na minha abstracção, a contemplação da curiosa dança de luz que atravessa travessamente o asfalto do estacionamento.
Um bando contínuo de falsas fumarolas, corre a esmo rente ao chão, como que levadas por missão desconhecida, ou atraídas por acontecimento que a minha natureza humana não consegue adivinhar. Cruzam-se em imprevistos zig-zagues, esboçam pequenas tentativas de elevação para de imediato se arrojarem rentes, como se fossem incapazes de sobreviver na ausência do contacto sólido do pavimento.
Deslizam apressadas esgueirando-se entre os marcos que delimitam o lugar, e comprimidas pelos muros que contornam os canteiros de arbustos, afunilam-se para o “Promenade South”, relançando-se ao longo da estrada, galgando o passeio e deixando após cada pequeno obstáculo, um montículo de areia fatigada. Enquanto a vista alcança prossegue a migração, até que a distância transforma numa suave mancha indefinida, as areias arrancadas à imensa duna que separa da cidade, a extensa praia agora esvaziada até ao horizonte pela baixa-mar.
- “Fantasmas”! – Pensei. - “Fantasmas brincalhões, como crianças irrequietas; caprichos do vento e da luz ainda baixa, rasa, que coando os milhões de grânulos, lhes confere uma falsa luminosidade”.
Espectáculo gratificante para os sentidos como se de uma sinfonia de luz se tratasse.
Repousante, como que a gerar transparências reveladoras de coisas insuspeitadas, na memória submersa pelas urgências e importâncias do quotidiano.
St. Annes On The Sea.
27Nov2011
Fernando Fonseca

FOI EM MEADOS DE MAIO


Preparávamo-nos para sair de casa para mais uma das habituais “voltas”, desta vez para os lados da Perna da Negra, nas umbrias da Fóia.
Fui o primeiro acabar o café que era de cevada, à época torrada e moída na “Alentejana” situada em Odemira, na antiga várzea abaixo do nível da rua, no exacto lugar onde agora se encontra a estação de autocarros. Como me despachei antes do meu irmão, o pai mandou-me ao Quintalão espreitar a Fóia.
A montanha a sul serviu desde tempos antigos como um barómetro para as pessoas da região preverem o estado do tempo para um ou dois dias.
Antes de ser construído o prédio da esquina junto à casa de Pacheco Nobre, onde na época morava o doutor Jaurés, era possível avistar a Fóia do largo principal de S.Teotónio. Apesar de estar a fazer os treze anos, tive de subir os dois degraus da casa do Jonas ferreiro, para avistar o vulto azul cinza recortado no azul mais claro da manhã.
Voltando a correr, informei que a Fóia estava limpa, sinal de bom tempo.
A “volta”, variando entre um e três dias, correspondia a percursos diferentes num território de cerca de novecentos quilómetros quadrados.
Nessa época já o Santinho deveria ter uns quatro anos.
Lembro-me do dia em que o pai nos chamou para espreitarmos uma surpresa que estava na carvoaria. Excitados, entramos a correr na porta ao lado, e para nosso espanto deparamos com um burrinho preto de focinho branco que nos olhou timidamente. Como acontece invariavelmente com as crianças de aldeia, precipitamo-nos a fazer-lhe festas no pescoço e dar-lhe amistosas palmadinhas no lombo.
- Pai, é nosso? - Pergunta esforçada como que a pedir resposta afirmativa. - Qual é o nome dele?
Após breve silêncio, a sorrir, o pai disse perguntando: - Que acham se for… Santinho? Comprei-o na feira de S. Miguel.
- Ah! Na feira dos burros!
- Vocês sabem porque é que lhe chamam feira dos burros?
Tomei consciência então, de que na feira de Setembro e nos mercados mensais no Quintalão, se transaccionava principalmente gado vacum, que deixava no final do dia o terreiro completamente conspurcado de bóstias, junto às tendas das bebidas, das do José Bravo e a do seu cunhado António

Alexandre sapateiros de Odeceixe, das dos fatos feitos, e de uma única tenda de ourives, que ao que parece vinha dos lados de Avintes. Tenho uma vaga ideia de haver também muares e porcos, mas só lá em cima, no cerro do moinho caído.
- ???
- Pois fiquem a saber, que é porque de S. Miguel até Monchique os caminhos são tão maus, que só de burro se pode montar ou carregar o que for preciso.
A explicação pareceu-nos bastante convincente, pois os nossos pés descalços tinham perfeito conhecimento de cada metro dos carreiros que ligavam entre si os montes da Ribeira e que, ressalvando as varjas, seguiam sempre por encostas íngremes, sulcados por degraus rochosos que em alguns trechos resistiram a séculos de pisoteio.
A mãe, que nesse ano ainda não nos tinha deixado, é que, ao saber que o burrinho se chamava Santinho comentou indignada:
- Tu não tens vergonha de chamar santinho a um burro?
A resposta, fresca na minha memória.
- As outras pessoas rezam aos santos que as ajudem, e até hoje que eu saiba, ainda não fizeram milagre nenhum. Este vai ajudar a gente com certeza.
Aparelhado o Santinho, canastras de lascas de castanho em cima da albarda com as faianças (pratos, tigelas, canecas e pelenganas, que os panos corresponderam à primeira fase do fardo às costas), fechada a porta, saímos pela rua do Calvário, Ribeirinha, Vale de Feixe e Delfeira até à Relva Grande. Virando para sudoeste pelo limite das “alturas” até Vale de Água da Serra, descemos para o Reguengo pelo fim da tarde com uma luminosidade eléctrica.
- O tempo vai mudar. - Disse o pai.
Ainda era cedo bastante para ir dar um mergulho no Pego das Andorinhas com o Manuel, sobrinho do Ti Zé Vicente, o lavrador do Reguengo.
O Pego das Andorinhas nessa época, antes das grandes erosões provocadas pelo plantio dos eucaliptos, era de grande profundidade e estendia-se pelo triplo da extensão actual. O Manuel era, com mais quatro anos do que eu, um bom amigo e criador de águias imperiais que ia buscar aos ninhos, soltando-as quando chegava a altura de se aventurarem pelas serranias.
Talvez a proximidade com humanos, lhes tivesse dado excesso de confiança contribuindo para a sua extinção.
Lembro-me de uma, ave lindíssima que me vendia por cinco escudos, negócio que o meu pai felizmente não consentiu contrariando a minha ansiedade.
O Tio Zé Vicente do Reguengo, entroncado, de pescoço curto e rosto redondo, era um homem com aura de nobreza no olhar, no falar e no trato, o que se reflectia no respeito que lhe mostravam os familiares e os três criados da casa; - o Joanito, que foi criado ali desde pequenino, o vaqueiro Ti Manel Domingos


com dente sim dente não, sempre sorridente apesar das nossas travessuras, de quem dizíamos ser o namorado das vacas, e o porcariço cuja imagem e nome se apagaram da minha memória.
A irmã do Manuel, Maria, como ele criada pelos tios desde tenra idade como se fossem filhos teria uns dez anos, e era grande companheira de brincadeiras passando horas connosco em cima da figueira a tagarelar ou, ao escurecer, tentando em vão atingir os morcegos com compridos ramos de esteva seca.
À hora da ceia, a senhora Francisca colocou um enorme tacho de papas sobre a escura mesa quadrada, no meio da casa de entrada, e à volta do tacho de arame, sempre cuidadosamente areado, realizou-se a coreografia do costume. Passo em frente, cortar uma porção de papas com a colher, passo atrás para dar lugar a outro, abocanhar a porção tendo o cuidado de limpar bem a colher com os lábios para não babujar na dose seguinte, as que permaneciam no tacho. Acompanhamento versátil: sardinhas ou carapaus fritos, piques de carne, de linguiça ou de toucinho, peixe da ribeira e às vezes passarinhos fritos. O mel ou o leite das cabras era um mimo menos frequente.
Serão adiantado, a patroa fez questão de que dormíssemos num colchão colocado sobre a grande arca de amieiro. Só lá mais para o meio do verão é que íamos todos dormir na eira, mergulhados na palha de aveia ouvindo histórias, com o olhar perdido na profundidade do céu estrelado até que o sono nos vencesse as pálpebras.
Alta madrugada, o sono tranquilo foi bruscamente interrompido pelo estouro do trovão.
Na telha vã pouco acima de nós, repicava o aguaceiro que se despejou sobre a larga margem da ribeira, ainda a prolongada sucessão de ressonâncias devolvidas pelo eco das encostas envolventes não se tinha calado. Apesar de inesperada, a chuvada foi agradável de ouvir, como o é sempre que estamos fora do seu alcance. Quando a chuva se calou voltou o sono, e quando de manhã nos fomos lavar na levada, foi com alguma relutância que nos molhamos na água ligeiramente barrenta.
Devorámos o arroz de galinha com cabidela que constituiu a primeira refeição do dia.
- Vá moços, comam que os dias já são compridos. – Como todos naquela casa, a lavradora era uma senhora bondosa merecedora de um respeito cerimonioso.
O negócio da louça estava a dar ainda que moderadamente, e o pai retribuiu a hospitalidade, oferecendo uma pelengana com uma rosa vermelha estampada no fundo, como foi moda no final dos anos cinquenta.
O meu pai foi, por volta de 1935, o pioneiro na venda ambulante de utilidades, sobretudo tecidos e miudezas criteriosamente acomodadas num fardo de cotim que transportava a tiracolo.
A iniciativa respondeu às necessidades das pessoas, que teriam de se deslocar nalguns casos mais de vinte quilómetros para o mercado mensal. Entre as primeiras segundas-feiras de cada mês não tinham possibilidade de resolver as suas carências. O negócio foi compensador dando-lhe a fama de ser rico. De tal modo que o seu sucesso induziu outros a entrar na venda ambulante, chegando a ser trinta no mesmo território. O que fora bom para um, tornara-se insuficiente para tantos. Mas como das crises só se sai mudando de paradigma, passou a vender louça, o que não poderia fazer sem o seu precioso auxiliar, o Santinho, que ficou na memória de toda a gente como “o burro ensinado”.



Uma hora depois de sairmos do Reguengo pela ribeira acima, parámos no Alcanforado com a sua várzea aconchegada pela ladeira soalheira, destacando-se no meio da planura, um montículo a espreitar as águas cantantes no cascalho da ribeira. Pequena elevação alongada, que desde esse tempo me provoca uma estranha sugestão de mistério a que não é alheia a sensação de bem-estar daquele lugar, diria que, em consonância com os princípios do Feng Shui. Surpreendente, foi encontrar cinquenta anos depois no Museu da Escrita do Sudoeste em Almodôvar, uma estela de dimensões apreciáveis encontradas precisamente no Alcanforado.
Depois, no Bemparece com habitual e demorada conversa com o Ti João, venerável ancião com mais de noventa anos e raríssimas barbas brancas a destacarem-se sobre o luto, e, já na hora do calor, a Foz da Perna Seca. Aqui, junto ao açude, à sombra de magníficos amieiros de cujas alturas acontecia no fim do verão, caírem cachos de uva, descansamos na relva fresca e nadámos entre cardumes de bordalos que nos beliscavam as canelas, provocando cócegas com risos nervosos.
Pelo meio da tarde parámos na venda da Ti Custódia Paredes, velha, magra, de nariz comprido e pingão, olhos mortiços atrás do balcão baixo escurecido pelo uso, onde por cada freguês que bebesse um medronho, havia outro igual para a dona da casa. Nunca se embebedava. Limitava-se a fazer a manutenção de uma piela que apanhara ainda moça.
- Atão, Ti Zéi. Estes é que são os seus mecinhos? – Pergunta sistematicamente repetida, em todas as visitas.
Passando pela Foz do Arroio e Selão, deixámos à direita a Ribeira Grande e tomámos pela Perna da Negra.
A Ti Maria Antónia no monte das Taipas era freguesa certa e muito hospitaleira. Sempre que acontecia lá pernoitarmos, punha-nos toalhas impecáveis com os vincos do ferro e lençóis de linho caseiro, que eu estranhava pela dureza da textura. O marido repartia-se no trabalho da horta e no ofício de abegão. Intrigava-me que, dos cinco abegões que conheci só o Agostinho Ladeiras, era fisicamente diferente. Todos os outros, não sendo aparentados me pareciam iguais.
Passada a Foz dos Olhos Negros no mais entalado da serra, chegamos à noitinha à Várzea, onde morava o senhor Manuel Gaio, um dos mais ricos proprietários residentes da Perna da Negra. Era homem de uma cultura surpreendente que mantinha com o meu pai discussões de carácter filosófico, das quais me lembro, enquanto caminhávamos ao longo do rego da água, as vantagens e inconvenientes de saber telepaticamente, os pensamentos de um interlocutor.
Este homem conseguiu nos anos cinquenta, mobilizar os lavradores de entre a Relva Grande e o Cerro da Tenda antes da descida para a ribeira, para que todos com a respectiva criadagem, rasgassem à picareta uma estrada, para as debulhadoras avançarem ao longo da vertente sul da Serra da Brejeira. Até então, os cereais tinham de ser transportados no lombo das bestas até à eira mais próxima. Ironicamente, o senhor Manuel Gaio seria esmagado muitos anos depois, pelo tractor que conduzia na estrada por ele construída.
Ao serão recheado de conversa sobre política, o assunto derivou para acontecimentos da guerra civil. Falaram do Remexido, que ali perto no Azevinho, tinha um dos seus mais seguros refúgios. O chefe guerrilheiro aplicava na ribeira, o bom relacionamento com os serrenhos. Ele sabia que, para que a



população não o denunciasse, não deveria hostilizá-la. Exemplo dessa estratégia foi o julgamento sumário e execução imediata por fuzilamento, de um dos seus homens que roubara uma galinha.
Virando-se para mim e meu irmão, o dono da casa disse:
- Amanhã, depois do café, vou mostrar-vos onde o fuzilaram e enterraram, debaixo de uma sobreira.
Era o único monte onde ao pequeno-almoço, bebíamos um fluido creme de soja em vez do café, acompanhado com fatias de bolo branco que a lavradora fazia.
Deliciados com aqueles mimos, descemos umas centenas de metros pela vereda da véspera, e paramos junto de uma sobreira de grande porte, no sítio onde a pequena várzea se estreita junto ao pontal que desce de norte.
Lembro-me de ter sentido uma sensação estranha à sombra da muda testemunha de um facto, pelo qual a história de Portugal se entretecia com um acontecimento local desconhecido com toda a certeza dos cronistas, mas principalmente dos outros rapazes da aldeia. Hoje, interpreto aquela sensação como a consciência de um privilégio. Haverá ainda na Ribeira da Perna da Negra, alguém conhecedor do caso?
A emoção daquela informação não se ficaria por ali, pois parte da manhã foi gasta a subir o barranco do Azevinho até às alturas da serra onde, escondido entre cerros, está o monte que lhe dá o nome. Era ali o quartel do Remexido.
Enquanto o pai negociava com as mulheres da casa, deambulamos pelo rossio como que à procura dos fantasmas da guerrilha. Quantos teriam sido? O que fariam enquanto estavam ali, no intervalo das expedições?
Eu procurava posicionar-me no terreno como se fosse um deles, quando descobri perdido no monturo, muito danificado por fogo antigo um crucifixo de madeira ainda com parte do corpo de Jesus. Lá o deixei, pois sabia que o meu pai, ateu radical, não me permitiria a posse de tal achado, além de que eu próprio aos treze anos estava fortemente influenciado pelas ideias anti-clericais. Achei que o objecto era uma confirmação da presença dos guerrilheiros miguelistas, unha com carne com a Santa Madre Igreja. Nada mais do que isso.
Quando regressamos descendo o estreito barranco, começaram a juntar-se enormes cúmulos a cruzar a faixa de céu entre as encostas cobertas de mato.
Ao chegarmos à desembocadura do barranco na Ribeira, a trovoada e a chuva impuseram vigorosamente a sua presença. Abrigamo-nos na Venda, casa da cerca habitada por uma velhota que vivia com um filho e uma filha. Ele parvinho, e ela, de nome Cecília, que eu imaginava ser a protagonista de um despique, na festa de João de Ribeiras. As mulheres eram costureiras, e eu admirava a sua habilidade de, a partir de restos de calças velhas, fazerem chapéus de pano com recurso a uma costura espiralada, à máquina a pedal. Um tipo de chapéu que só se via usado pelas gentes da serra.
Ao abrigo desta casa, assisti a uma das mais inesquecíveis trovoadas.
Aumentando o estampido e a frequência dos trovões as mulheres suspenderam o trabalho, taparam as máquinas com mantas de lã e encostadas uma à outra, desfizeram-se em ladainhas a Stª Bárbara enquanto o parvinho, encolhido a um canto, perdeu o sorriso que permanentemente lhe habitava o rosto.


O entendimento que já então tínhamos dos fenómenos naturais provocou-nos um comportamento reprovável, que foi rir cumplicemente da crendice das costureiras, que pensavam ficar a salvo dos coriscos devido à récita contínua das suas orações.
A cada trovão o telhado estremecia. Estremeciam as arcas de amieiro onde, sentados perto da porta, assistíamos á crivagem do chão pelo granizo basto e grado.
O ruido da enxurrada que cresceu surpreendentemente depressa, ficou abafado pelo estrondo da trovoada que se ouviam com intervalos cada vez vais curtos após o encandeado do relâmpago. A professora D. Maria Irene ensinara-nos que, quando contássemos catorze segundos de intervalo entre o clarão e o ribombo, a trovoada era segura para quem fizesse a contagem. Mas ali, nem a cinco segundos chegava, nem a quatro nem a três. Sobrepunha-se cada troar ao eco devolvido tantas vezes, quantas as encostas que rodeavam a confluência do barranco com a Ribeira, oferecendo um ribombar contínuo como se dúzias de bidões vazios rolassem pelas calçadas da Aldeia.
Dois segundos, talvez um só, e deixámos de gozar à custa das mulheres. A sequência, vigor e ressonância daquela trovoada calou-nos os sentidos. Ficou-nos o permanente e contínuo da enxurrada e dos estrondos. Já não dava para antecipar o trovão a cada relâmpago. E então deu-se o clímax. Relâmpago e trovão simultâneos. E o raio. Largo traço impresso alguns segundos na retina, para, momentos depois do encandeamento, assistirmos ao abrir-se em duas a enorme sobreira que sobressaía do medronhal da outra margem a escassos quarenta metros. Atingida pelo machado de fogo a imponente árvore multissecular despenhou-se, metade para cada lado, lenta até metade da queda, rápida e decisiva do meio para baixo, esmagando com o peso das pernadas os relativamente frágeis ramos dos medronheiros. Calado o trovão, permaneceu o choro do matagal esmagado, triturado até aos últimos gemidos.
Depois, outro trovão a que se seguiram incontáveis dezenas, alargando-se o espaço entre o clarão e o estrondo.
A trovoada afastou-se.
A Ribeira transbordou pelas margens inundando o pequeno hortejo da casa.
A pinguela foi abalroada por uma árvore que a corrente arrastava inexoravelmente entre os amieiros que rangiam curvados para jusante.
A chuva amainou. O sol rompeu entre os cúmulos. Saímos todos para o rossio a olhar as furiosas águas barrentas, tentando identificar os detritos que rumavam à praia de Odeceixe.
Na cabana de palha de centeio ao lado da casa, o Santinho estava enxuto embora nos parecesse amedrontado.
 O pai comentava com as mulheres que não havia memória de uma cheia assim em tão pouco tempo.
Saindo do seu canto, o parvinho chegou junto de nós e saiu-se com esta:
- É mais certo nascer um burro sem colhões do que vir um mês de maio sem trovões.
Fernando Fonseca
Alto das Taliscas 18ABR2012