O GATO SONHADOR
conto
- Era uma vez um gatinho sonhador
que resolveu ir esperar pelo dia seguinte, E disse aos outros gatinhos:
- Vou esperar por amanhã.
Os outros responderam: - Esperar
por amanhã? Quem te disse que o amanhã ia chegar? Que saibamos, não recebeste
carta, não vimos ninguém dar-te recados, nem ouvimos anunciar na rádio… vais
esperar? E se ele não vier?
O gatinho respondeu: Vai chegar,
sim. Eu sei.
E sem ligar mais aos gatos
cépticos que estranharam aquela ideia tola, procurou um lugar alto, disposto a
esperar. Quando o amanhã chegasse, haveria de ser o primeiro de todos a vê-lo
e, recebendo-o, dar-lhe as boas vindas. Haveriam de ficar grandes amigos.
Esperou, esperou, até depois de
silenciarem os ruídos da festa que soavam mais espaçados e longínquos. As luzes
do bairro apagaram-se quando as pessoas já dormiam, e o gatinho, solitário no
lugar escolhido para a espera sobranceiro aos telhados da cidade, depressa se
viu envolvido pela noite mais linda que alguma vez imaginara.
O mundo era um conjunto de formas
indefinidas e dispersas mergulhadas na penumbra, e por cima, como uma campânula
gigantesca, a abóbada do céu estava salpicada de milhões e milhões de estrelas
a piscar, umas tão brilhantes que pareciam ali mesmo ao alcance dos seus bigodes,
outras nas profundidades do espaço, quase imperceptíveis, parecendo apagar-se por
momentos.
O gatinho gostou de imaginar que
era único e que as estrelas naquela noite, tinham-se juntado todas para ver o
gato que acreditou na vinda do amanhã, contrariamente aos outros que se
contentavam com o dia presente. Como aquela gatinha preta que com o seu
sotaque, que ele não sabia se era brasileiro ou se era moçambicano, lhe disse:
- Ispérá pelo amanhã? xiu… pode ispérá sentado. Sentádjinho ‘viu?
Ir ao encontro do amanhã,
predispor-se para receber o dia seguinte, era coisa que não passava por cabeças
com juízo. O futuro haveria de chegar, quer se fizesse ou não alguma coisa por
isso. Porquê ralar-se? – Era o que pensava toda a gente.
As estrelas são eternas. Nelas
está todo o passado e todo o futuro. Foi o que o gatinho sonhador sentiu que as
estrelas lhe contavam, não com palavras mais ou menos miadas, mas com
pensamentos que se formavam dentro da sua cabeça.
“ Pode ispérá sentado;
sentádjinho ‘viu?” martelou a voz da gatinha preta, quando o sono lhe começou a
afectar a vigília e as pálpebras se lhe tornaram pesadas. Mas ele não queria
adormecer. Não queria perder o espectáculo da noite. E se, quando o amanhã
chegasse, o encontrasse a dormir? Tinha vergonha de que isso pudesse acontecer.
Foi quando se lembrou de ouvir
dizer, que a gata de Joana Mendes com um olho dorme e com o outro caça ratos.
O nosso gatinho, passou a
alternar ora fechando o olho esquerdo, ora o olho direito, como forma de
resistir ao sono. Mas fechar os dois, não!
Sabia que os morcegos e as
corujas eram os únicos que não dormiam e, ah! As ratazanas, que corriam
silenciosas no assalto aos contentores do lixo. Mas esses, não queriam saber
mesmo nada do amanhã. Para eles a noite poderia durar infinitamente.
Nestes pensamentos, não se
apercebeu de que muito discretamente, os limites da paisagem a leste foi saindo
da penumbra, e no céu, lá muito baixo, o contorno do mundo começou a ser
desenhado por uma leve claridade.
Tomou consciência da mudança, quando
na retina do seu olho vigilante, chocou um brilho como se fosse um diamante a
cortar o torpor que teimava em fazê-lo adormecer. Excitado, levantou o olhar
para o horizonte e viu, nada mais, nada menos, do que o planeta Vénus que ele
julgou ser a mãe de todas as estrelas. E viu-a subir pelo céu, as outras a
desviarem-se à sua passagem.
Algo de importante estava a
acontecer. O gatinho pôs-se nas quatro patas, alerta, sem o menor resquício de
sono. A sua alma cresceu, (até então, ele nem sabia que tinha alma), uma
alegria inigualável inundou-lhe o focinho. Atrás da mãe de todas as estrelas, o
céu foi ficando azul, de um azul lindíssimo luminoso e puro, que lhe provocou
uma onda de emoção e alegria.
O Dia Seguinte estava a chegar e
ele assistia à sua chegada. Ruídos lá em baixo na cidade, indicavam que já
havia gente nas ruas, mas para aqueles, era um dia igual aos outros, rotineiro,
chato, sem nada de novo.
No alto, o gatinho, julgou ouvir
toques de trombeta instantes antes de o sol lhe acariciar os bigodes, o seu
calor a subir-lhe o focinho, entre os olhos, a passar-lhe o alto da cabeça
entre as orelhas, percorrer-lhe o lombo com uma carícia que o fez arquear-se,
sentindo em cada pêlo um raio de sol, até aquela manchinha branca na ponta da
cauda erguida.
Só então fechou os olhos para
gozar plenamente a carícia do seu novo amigo.
Então, reparou que o amanhã já
era hoje; que todos os dias, antes, foram futuro.
Da sua pose heróica desceu
tranquilamente, percorrendo os caminhos que o sol ia alumiando e aquecendo. E
juntos, entraram na vida da cidade.
Fernando Fonseca