AS ALTURAS
É como as pessoas da Ribeira
chamam ainda hoje ao planalto aonde chega aquele plano inclinado que sobe não
subindo, desde a beira-mar até à Relva Grande, Moinho do Loução e Vale de Águia
da Serra.
Daí se vislumbram telhados,
hortas e os alinhamentos sinuosos de freixos e amieiros, desde a Foz da Perna
Seca, pela Ribeira de Odeceixe até ao Selão. Paisagem emoldurada pela Fóia
pintada de um ligeiro azul cinza aparentemente eterno.
Quando, pela azinhaga das Quintas
passava ao Mar Alto, continuando por aquela planura toda, Moinho da Moita
acima, Monte do Portela até ao moinho da Relva Grande verdadeiro marco
paisagístico e caminheiro, chegado ali, lembrava-me sempre da gente da Ribeira
dizendo: - Além nas alturas…
A partir dali, enquanto caminhava
atrás do “Santinho”, o meu espírito parava na contemplação da serra, que
pregueava a paisagem negra dos estevais matizada nos corgos pelo esverdeado dos
medronheiros. E atirava-me no vazio, voando por sobre as Entre-águas, Cerro do
Gato, Taipas, até à Foz de Joana Mendes e ladeira das sete envoltas, numa
evasão imaterial, gozando antecipadamente as sombras tão convidativas da
ribeira e a frescura cantante da água brincando no cascalho. E cantava aquela
cantiga que o pai nos tinha ensinado:
- Água clara da corrente
que vais tu a lamentar?
São murmúrios da nascente.
Ou pressas de ir ter ao mar?
A canção, que mais tarde soube
ser, um poema de Afonso Lopes Vieira, traduzia tão bem, a alma daquela ribeira
que eu aprendi a amar desde menino.
- Lava a roupa à lavadeira,
põe a azenha a trabalhar;
nunca pára no caminho
com pressa de ir ter ao mar.
E mergulhava o espírito naquela
tela viva, cenário de tantos momentos da minha pré-adolescência, emoldurada à
esquerda pela Serra dos Algares, princípio da cordilheira que se estende pela
Brejeira adiante, até onde o sol nasce; à direita, pelas duas maminhas da Serra
de Marmelete e pelas alturas do Rogil a descambar para Aljezur.
E pairava demoradamente, em toda
a leveza do meu ser sobre os corgos, seguindo deliciosamente nas suas voltas e
envoltas, as pontas dos amieiros até à Ribeira da Perna da Negra, para seguir,
- Correndo,
correndo
Sem nunca parar,
Em busca do rio
a caminho do mar.
Sonho muito frequentemente que
voo. Umas vezes, como se fosse um pássaro; outras, em corpo e alma numa
plenitude sensorial.
Chego a pensar, que os meus
primeiros voos foram ensaiados sobre esta serra, enquanto caminhava atrás do
burrinho, os pés nus, na poeira ocre do caminho.
04DEZ85
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