O
SACRIFÍCIO
Acto
sagrado, o sacrifício.
O
conceito invoca a existência ou a suposição de alguma dor dignificando-a pelo
altruísmo que o motiva.
Sacrifício
é um sofrimento a que nos sujeitamos voluntariamente, quando consideramos que
há algo mais elevado que nele condiciona a sua salvação. Algo que amamos ou a
que atribuímos uma importância superior.
O
sacrifício honroso nunca é feito para defesa de causa própria. Pelo contrário,
entende-se como um acto heróico, uma abnegação, ou seja; Uma situação em que o
agente se apaga, na medida em que não é o usuário directo das suas
consequências. O sacrificado tem de acreditar que não vai sofrer em vão. E,
acreditando, vai até às últimas consequências podendo a sua abnegação,” in-extremis”,
consumar-se na oferta da vida pessoal.
A
Santíssima Trindade
Em
1954 era eu um menino da 3ª classe, idade em que o nosso universo se
circunscreve à família e aos vizinhos, ao território cenário das nossas
brincadeiras, e onde têm função de matéria-prima as incursões do saber, quer
vinculadas pelos pais, quer, como é o caso que se segue, pelos professores da
Primária.
É um
microcosmos sempre completo mas em expansão permanente.
Por
esses anos, foram tornados públicos dois projectos a nível nacional que
representaram no nosso país, a dualidade complementar do poder de então. – O
político e o religioso: A Ponte Salazar e o Cristo-Rei.
O
primeiro, que só estaria concluído 10 anos mais tarde, era uma afirmação do
Poder fascista apoiado na modernidade tecnológica (embora pela mão dos
engenheiros americanos). Sendo uma decisão do governo autocrático de Salazar,
não precisou de convocar os cidadãos para a sua realização. Era o Estado Novo,
exibindo um imagem de vigor que oferecia ao povo apático a ligação entre as
duas margens de Portugal.
Deveria
ser entendida como uma benesse, quando na realidade o povo já a tinha pago com
os impostos, com o sacrifício involuntário da sujeição ao obscurantismo, e pela
exploração sistemática das colónias.
O
segundo, concluído antes num lugar onde se imporia sobranceiro à ponte e à
cidade a configurar um padrão do divino na figura de Jesus já não crucificado
como foi tradição durante vastos séculos, mas com a abertura de um abraço como
que a prometer a vida eterna. O Cristo-Rei a imperar sobre o poder terreno como
que a afirmar que a humildade, a submissão e a aceitação pacífica das
desventuras, haveriam de ter um prémio final, lá, onde supostamente viriamos a
ser todos iguais como vinho dissolvido em água.
Foram
os anos a seguir à grande exposição do Império na vizinha Belém.
O
que desse ano melhor conservo na memória, foi a mobilização que a minha
professora imprimiu aos alunos (como as professoras das outras classes à
semelhança do que ocorreu no país inteiro) para que durante aquele mês, todos
fizéssemos um sacrifício diário para ajudar a construir o monumento no Pargal
de Almada.
Tanto
quanto me lembro, pedia-se a cada menino que levasse uma moedinha, mas
precisarei de me socorrer da memória de condiscípulos para ter a certeza. Penso
que foi a primeira vez que ouvi a palavra “sacrifício”.
Aqueles
que não pudessem levar a moeda teriam, no início de cada aula, que dizer em voz
alta como se de uma profissão de fé se tratasse, que actos tinham concretizado,
a que se pudesse chamar sacrifício.
Não
me lembro com clareza de nenhum exemplo concreto. Não certamente que algum dos
meus colegas tivesse “ajudado alguma velhinha a atravessar a rua” exemplo que
não se adequaria à realidade da aldeia, mas os sacrifícios relatados não
andariam muito longe disso. Seria mais do género: “carreguei a infusa da água à
minha avó” ou “ descasquei as batatas à minha mãe” ou, “ levantei-me mais cedo
para dar comida ao gado”. Tenho ideia de que uma parte das que ouvi me pareciam
invenções de recurso, enquanto no meu pensamento ocorria uma tempestade de
ideias na tentativa de construir um testemunho que me parecesse credível.
“Agora o Fonseca”. Dirigi-me ao estrado,
virei costas ao quadro e ouvi sair-me numa voz precipitada: “Hoje bebi o café
sem açúcar”. “Muito bem!”- Ajuizou a D. Maria da Graça, enquanto eu me
esgueirava para a carteira, tentando perceber se tinha de facto ou não, posto
açúcar na infusão de cevada torrada. É que na minha casa nem sempre havia
dinheiro para o comprar.
Só
muitos anos depois percebi que não era com aquelas moedinhas nem com os nossos
“sacrifícios” que se pudera construir o Cristo-Rei. O que se estava a construir
era o reino de Cristo no íntimo mais profundo de cada uma daquelas crianças. Todos
aqueles sacrifícios tinham sido inúteis, como coisa de fancaria.
A Troica
Voltam
agora decorridos sessenta anos, a pedir-se aos mesmos meninos e a outros
meninos seus filhos e netos, que voltem a fazer sacrifícios. Se dantes foi por
uma certa e restrita espiritualidade, agora já não se trata de uma causa
espiritual. O que está em causa é a sobrevivência de um sistema que se revela
querido de alguns e madrasto para quase todos. Quando foi para fazer obra, o
povo foi mantido arredado, para tornar mais expressiva a magnanimidade do
ditador. Agora pede-se ao povo que legitime a destruição do estado social, que
assista ao renascer de “apartheids”, e que aceite a perda de uma soberania que
foi progressivamente empenhada em actos nunca referendados.
Manipulado
por um meticuloso processo de amansia, o povo entrega o que tem e o que não
tem. Deu o trabalho em troca de um pagamento cujo valor não foi por si
estipulado, e vê agora esse pagamento ser levado para dar cobertura a ladrões e
àqueles que sem arriscar nada de seu, esbanjaram em supérfluas auto-estradas e
outras megalomanias, aquilo que era de todos.
Somos
pressionados todos os dias com o argumento de que temos de nos sacrificar para
salvar Portugal. Querem fazer-nos acreditar que somos, cada um de nós, os
responsáveis pelo “estado a que isto chegou”, com a estranha fórmula de que
antes, tínhamos de trabalhar mais para salvar a economia, e agora, para a
salvar, tiram a centenas de milhar, a oportunidade de trabalhar. Fica fora
deste sacrifício, uma classe de intocáveis, coniventes políticos, e ocultos
manipuladores dos cordelinhos do Poder, que durante todo o processo construíram
património “legalmente” à custa daqueles a quem se pede o sacrifício, segundo o
“efeito de Mateus” (… Ao que tem,
dar-se-á e terá em abundância. Mas ao que não tem até o que tem lhe será tirado).*
Na
verdade, não é sacrifício nenhum, antes, de facto, uma espoliação. Sacrifício
existe de motu próprio, e faz-se quando se crê na sua utilidade.
Assistimos
aos mais directos responsáveis pelo processo do ”pagamento da dívida” afirmarem
que o povo está solidário com as opções dos governantes. Dizem-no aos
microfones sempre que a seu lado está um político estrangeiro. Dizem-no, e tal
como esses estrangeiros sabem que não é verdade.
Não
é verdade porque o povo sabe que a austeridade não belisca os privilegiados.
O povo
sabe, que a ausência de corajosas medidas de estado para resolver os problemas
não se albergam na mente dos governantes. Sabe que são vendidos ao estrangeiro
por tuta e meia os poucos recursos que podem sustentar a soberania de Portugal.
Que a electricidade só custa metade daquilo que pagamos à EDP. Que esta, por sua
vez entrega dividendos dos lucros a uma empresa estadual chinesa. Que o governo
Português deu dinheiro aos angolanos para nos comprarem um banco pela décima
parte do valor que lhes ofereceu. Que há gente vencida pela doença por não ter
dinheiro para os remédios. Que os jovens licenciados são aliciados para fugirem
do país. Que há universitários a abandonar os estudos porque as propinas são caras.
Que os livros do ensino básico têm o preço de artigos de luxo. Que os bancos
emprestam a quem joga na bolsa e negam ajuda às PMEs. Que há cada vez mais desempregados.
Que aos desempregados são cortados os subsídios de desemprego, apesar de terem
feitos os descontos de lei. Que em breve, cada vez mais cidadãos sem trabalho e
sem qualquer rendimento serão forçados a roubar para alimentar os filhos. Que
temos um Presidente da República, que em vez de impor ao governo a resolução
dos problemas que afectam os cidadãos, repete apelos em público para que os
ricos sejam caridosos para com os pobres. Que o valor das reformas é contraído
e vem aí o aumento das rendas, e dos transportes. Que a ministra da Agricultura
quer criar uma taxa gémea, duplicando a que existe via IVA, para os alimentos. Que
ganhando menos, os contribuintes vão pagar impostos mais elevados.
Eis
porque em Portugal, e já agora na Grécia, na Irlanda, em Espanha, na Itália, e
em breve na França, os povos não fazem sacrifícios. São sacrificados
Sacrificados para o engrandecimento dos “Tio
Patinhas” deste mundo.
Estes
e os seus mandatários, têm em marcha um projecto para levar a mão-de-obra ao
limiar da escravatura, quando um dia de trabalho não valer mais que uma simples
côdea de pão. O seu paradigma é o de concorrer com os chamados países emergentes,
baixando as condições de vida ao nível do dos trabalhadores da India e da
China. Sabem que as suas fortunas só crescerão, multiplicando o número de
pobres.
Ironia;
O Sistema Democrático colocou no poder, as sanguessugas da Democracia. Não
conseguirá o voto apeá-las.
Acredito
que está a surgir uma nova classe de miseráveis que por força das
circunstâncias protagonizará uma revolução violenta a nível internacional. E
dentre esses ascenderão os nomes de heróis, que por não terem mais nada em que
acreditar, avançarão para o extremo sacrifício.
* - Anselmo
Borges D.N.21ABR2012
Fernando
Fonseca
Algés
21ABR2012
Nota – Este texto foi
enviado via NET para os meus contactos com a seguinte introdução:
Caro(a)s amigo(a)s,
A constatação dos
factos actuais só por si, não nos permite uma crítica substantiva, se não
tivermos como referência experiências anteriores.
Nessa perspectiva,
relancei um olhar para 60 anos atrás, e com a memória desses tempos debrucei-me
sobre a questão dos sacrifícios a que nos forçam para salvar a economia
nacional e desse modo (dizem), assegurar a soberania de Portugal.
Em quatro páginas A4
submeto o resultado a vossa apreciação
Um abraço.
Editado no
blogue “wwwpontodeinterrogação.blogspot.pt”
Sem comentários:
Enviar um comentário