sexta-feira, 26 de outubro de 2012

ESPINOSA


ESPINOSA…



Espinosa expõe, decididamente, uma ideia sedutora.
Tem havido e continua a haver filósofos e outras pessoas, que não figurando no catálogo de produtores de pensamentos originais sentem necessidade de especular, fazendo disso reflexão acercade, entre outros temas, a ideia de Deus e a fé que a suporta.
Fazem-no, e aí me incluo, não para encontrar um “pai desconhecido”, mas pela necessidade de um exercício intelectual que dê coerência ao pensamento, e acrescente hipóteses lógicas, por oposição ao Dogma.
É que a fé, apresenta-se-me como um beco sem saída, um argumento que visa essencialmente a auto contenção e a aceitação de que tudo o que esteja para lá da razão não pode nem deve ser procurado. Como se a razão fosse um processo estático e acabado.
Apoiados na fé dos crentes, podem os sacerdotes dizer: “O pai não está em casa. Porta-te bem, que ele há-de tudo saber. Até lá, faz o que eu te digo e como te digo”. – É a velha história: “ Come a sopa, senão vem aí o papão”.
No meu ponto de vista, a ideia de Deus, magnífica invenção do homem que se interroga, é a eterna (sempre provisória) resposta para aquilo que a razão e a ciência ainda não alcançaram. Tão bela e poderosa, que não resistem a pô-la ao seu servico, os suseranos e outros poderosos da Terra, presente na quase totalidade dos argumentos de domínio de povos inteiros “Rex Deo Gratia”. O certo é que o conhecimento dos homens tem alargado os seus horizontes em detrimento do “território” de Deus.
Belíssima criação poética, desde logo contaminada no que ao judaico-cristianismo diz respeito, pela afirmação basilar de que Ele nos fez “à Sua imagem e semelhança”. Esta afirmação que remete obrigatoriamente para uma representação antropomórfica de Deus, não só pela forma mas também pela mente, coloca-o como um pai invisível a circular pela casa toda, ocultando-se inexplicavelmente ao olhar dos filhos, causando-lhes a dor da saudade. A constatação desta ausência origina uma espécie de angústia nos crentes, receosos de serem esquecidos e excluídos do céu.
Esta concepção figurativa e ao mesmo tempo invisível, constitui uma enorme falácia. Contudo não tem nada de original, tal como a una “Santíssima Trindade”, inspiradas que foram na civilização egípcia que significativamente contribuiu para a educação de Moisés. Entre os egípcios o faraó era o Deus encarnado. Tinha forma humana. Era um homem à semelhança de todos os outros. Tinha as mesmas necessidades, os mesmos gostos, prazeres, sofrimentos. Nada enquanto homem, o diferenciava dos outros homens. Mas a sua essência era a de Rhé, esse sim, inatingível, sendo a sua relação com a vida de sentido único, de cima para baixo, fonte de toda a vida sobre a terra.
Da terra tudo nasceu; o Sol, tudo criou. O sol, tudo queimou, a terra tudo comeu”.(1)
Ora, sendo Deus alegadamente o imperador universal, que designou pela Sua graça o poder dos reis e dos imperadores terrenos, por estar ausente da capacidade sensorial dos homens, precisou, (Deus tinha necessidades?), para a realização dos seus desígnios, de intermediários que organizando-se hierarquicamente, materializaram a administração do reino de Deus na Terra.
Tendo invertido a lógica dos egípcios, declararam inconsistentemente, que os homens foram criados à semelhança de Deus. Não deveríamos ter ficado invisíveis, devido ~a  alegada imagem e semelhança?
Lembro que ao longo da história, a Igreja foi reconhecendo sucessivas demonstrações científicas como fenómenos naturais, subtraídos à anterior explicação de milagres divinos. (Nicolau Copérnico queimado vivo, por ter demonstrado o sistema heliocêntrico. Galileu Galilei escapou à pena capital, porque se retratou quanto à natureza planetária da Lua -...”e no entanto ela move-se”. Giordano Bruno, um dos maiores filósofos do Renascimento, por ter teorizado sobre o mundo e sobre Deus foi preso pela Inquisição e queimado vivo em Roma no ano de 1600). Foi sempre prática da Igreja submeter as descobertas científicas à aprovação dos defensores da fé, ignorantes nas matérias em juízo. O conhecimento generalizado, sendo libertador, punha em causa os dogmas e consequentemente o domínio da humanidade pela igreja.
O Vaticano tem vindo muito lentamente, a reconhecer sucessivas demonstrações científicas, e está, segundo o recentemente falecido cardeal Martinni, com um atraso de cerca de duzentos anos, neste início do século XXI. Para sobreviver ao desbravar da ciência e de determinadas correntes filosóficas, e da cultura em geral, a auto proclamada única representante do criador do universo, tem adaptado o seu discurso à progressiva libertação da sociedade humana, e assumindo com tosca justificação, o obscurantismo medieval como “próprio daqueles tempos”. Obscurantismo que se arrastou nos tempos com extraordinária resistência.
Li recentemente excertos do pensamento de Espinosa, judeu holandês de origem portuguesado séc. XVII, alvo de xarém (excomungado) pelos seus, porque a coerência do seu pensamento acerca do divino, humanista por libertador do jugo religioso judaico-cristão, o impedia de aceitar a inconsistência, contradições e muito más explicações das escrituras sagradas.
Entretanto já eu tinha percorrido um íntimo caminho de reflexão acerca do Universo por um lado, e da necessidade de Deus por outro.(2)
Fui educado por um ateu, com uma “verdade” de igual valor com que o foram as crianças educadas na fé em Deus. Se nos conformarmos com esses modelos, se os considerarmos suficiente alimento para a inteligência, ficam-nos irremediavelmente na matriz sobre a qual construiremos a nossa humanidade.
Na adolescência, por circunstâncias várias, rompi o invólucro que continha a minha formatação ateia e naveguei num arquipélago de outras idiossincrasias. O meio social em que me vi envolvido, ofereceu-me uma relativa sedução do humanismo cristão. Embora com sincera disponibilidade para aceitar a dita fé, o “Divino Espírito Santo” entendeu que não deveria descer sobre a minha cabeça. Deve ter pensado que se eu crescesse em liberdade de pensamento, seria mais sincera, por desinteressada, a minha busca da harmonia, da bondade e da solidariedade, no respeito pelos outros sem a barreira de culturas e credos. Os meus actos seriam mais dignos pela abnegação, pois não os faria como moeda de troca pela eternidade, do que se a minha actuação na vida, fosse regida por dez mandamentos com medo do castigo divino.
Assim, não encontrando dignidade ou moral acrescidas na religião, e considerando insatisfatórios por insuficientes os autos de fé, declarei a um dos meus melhores amigos, cristão absolutamente convicto que me tinha introduzido no seu mundo, que me desvinculava inteiramente da religião, pois só por hipocrisia poderia presenciar e partilhar os seus rituais, ou aceitar que as religiões dominassem a humanidade. Fiquei mais seu amigo, quando me respondeu que a sua amizade não sofreria nada com a mudança.
Não voltei a ser o ateu radical, como na fase em que não pensava pela minha cabeça.
Em 1990, no texto “Adoradores do Sol e do Mar” (2) escrevi que as artes (plásticas) seriam um avatar resultante da intervenção do espírito sobre a matéria inerte.
O mundo está cheio de criações humanas, e como criador, disse a mim próprio que a haver Deus, esse, seria o Homem; só que não tem disso a consciência.
Para melhor compreender a matriz ideológica do meu primeiro educador, levei anos até encontrar um exemplar de “Sermões da Montanha” de Tomás da Fonseca, a quem o meu pai se referia como o seu “pai de pensamento”. Encontrei uma 2ª edição de 1959, cinquenta anos depois da primeira. Do diálogo entre o autor com os camponeses que acorriam aos seus serões, li, nas páginas 239 e 24.
… “A: - Porque, meus amigos dentro de cada um de nós há um Deus oculto, um Deus profundo, magnânimo e divino. Em cada um de nós palpita o sonha, vela e pensa um Deus, porque se não fôssemos nós…
João Cortez: - Já compreendo… Deus somos nós.
Joaquim Serrador – É isso. Deus e o homem…
A – Porque se não fôssemos nós, eu, tu, o Manuel, a Tia Joaquina, o Pedro, se não fosse o padre que diz missa, o missionário que prega, o devoto que reza, o doente que crê e tem visões, fiquem sabendo, que não haveria Deus nem anjos. Não haveria bom nem mau. Não haveria desdita nem ventura. Céu e o inferno, o bem e o mal, tudo isso se cria e amplifica e toma corpo na nossa inteligência criadora. Os deuses como os sonhos, têm origem em nós próprios. Todas as ambições, todos os conflitos, o amor, o ódio, a soberba, a cólera, a vingança e o medo, tudo tem origem no coração humano, ou antes na inteligência visto que toda a nossa vida é cerebral.”
Na verdade só na mente humana se encontra o conceito de Deus. Fora dela não se conhece qualquer manifestação sua que corresponda ao que tem sido pregado.
Acredito que Tomás da Fonseca leu Espinosa, embora não tenha no livro encontrado essa referência entre centenas de outros pensadores e personagens históricos em que apoia muitas das suas declarações.
A fé, como escrevi no texto “Necessidade de Deus?” (13 Jan 2010), não surge do nada por vontade do tal Espírito Santo. É indesmentível que absorvida na sopa cultural na família ou na comunidade, razão porque cada cultura tem o seu próprio Deus universal. E as imensas culturas de povos por esse mundo fora que não têm a menor ideia de um ser sobrenatural, criador divino? Por que motivo Deus os teria mantido fora do seu seio? Que Deus os teria excluído do seu clã?
Diz Espinosa:
“ Deus não existe da maneira como a religião o declara, mas tão-somente, como um “princípio” impessoal e espiritual como uma substância que constitui a realidade do Universo. (O panteísmo acredita que tudo é Deus). A existir Deus, Ele revela-se por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pela sorte e pelos actos dos homens”.
A partir deste entendimento acerca da existência, depreende-se que Deus é, por um lado um conceito espiritual, portanto produto da mente, com o que isso tem a ver com a sua alegada vontade, como o caracterizam as religiões de raiz judaica; por outro, identifica-se com as substâncias que constituem o Universo como o conhecemos.
Tomás da Fonseca está em consonância com este pensamento quando diz que o homem é Deus. Amplificando, direi que o homem é tão Deus como todos os outros animais, como qualquer forma de vida, matéria inanimada, por aí estarem presentes, todos os elementos fundamentais do Universo.
Nesta tese, seria mais fácil admitir a existência de Deus, porque Isso, e não Esse, não seria nem mais nem menos do que a totalidade da existência.
Por que motivo tem o Todo, necessidade de ser louvado e temido por uma parte de si proprio?
Tão descabido seria temer-sea si mesmo, como seria auto louvar-se. Ter consciência, bastar-se-ia.
Quem sabe, se o homem ganharia um outro sentido de responsabilidade, excluídas as doutrinas que levam os crentes à subserviência das respectivas hierarquias religiosas convencidos de que temendo, louvando, e solicitando benesses a Deus, terão assegurada uma incerta “vida eterna”. Claro que esta prática não dispensa os dízimos para o exército de sacerdotes e seus dirigentes.

Não me surpreenderia que, com a conhecida capacidade de adaptação da Igreja às revelações do conhecimento e da cultura, ela aceite um dia ainda muito remoto, que afinal Deus e toda a existência são uma e a mesma coisa, e que nada existe na determinação de uma vontade ou desígnio divino, dirigido especificamente aos Seres Humanos.
Só que esse reconhecimento alteraria irremediavelmente a natureza das igrejas, com consequências definitivas para a hierarquia, para o seu tesouro e o poder com que domina os crentes.


(1)(O Aproveitamento de Deus. - 13 Jan 2010)
(2 ) (Publicado na Revista Cultural de Algezur - )

St Annes on The Sea 16 Out2012
Fernando Fonseca

SOCIEDADE -Uma questão de Educação


SOCIEDADE – uma questão de educação


– “UMA SOCIEDADE SÓ É DEMOCRÁTICA QUANDO NINGUEM FOR TÃO RICO QUE POSSA COMPRAR ALGUÉM; NINGUÉM TÃO POBRE QUE SE TENHA DE VENDER A ALGUÉM”. (J-J.Roussaeu)

A filosofia absolutista e clássica não reconhecia ainda que as sociedades crescem e vivem também como as plantas, segundo as sementes, os climas, os ares que respiram e as águas que as regam.            (Oliveira Martins- História de Portugal – A Anarquia Espontânea; pág. 351)


Eu acrescentaria que o seu desenvolvimento saudável (para lá dos caprichos ambientais) depende ainda do cuidado do semeador ou do hortelão que lhe acompanha os ciclos de vida, amparando-as e adubando-as conforme as carências detectadas. Na falta de um cuidador, podem ser aniquiladas pela invasão das ervas daninhas, devassadas pelos predadores, destruídas pelas intempéries.
Às sociedades, querendo-as saudáveis, há que acompanhá-las segundo os ideais que ao longo da história e da filosofia, foram definidos como valorizadores e proveitosos.
As árvores se não forem cuidadas, acabam por embravecer, definham, deixam por vezes de dar fruto. Para que frutifiquem, o agricultor tem de podar sempre que necessário os ramos doentes e os que sobem demasiado privando os outros dos benefícios da luz. Arejada com a intervenção do seu cuidador, a árvore recupera a saúde liberta de moléstias e parasitas, desenvolvendo as condições para que todos os ramos beneficiem das brisas, da luz e do calor do sol. Assim deveriam as sociedades dispor de organismos adequados, para permitirem que a todos os cidadãos chegue por igual a cultura, a inteligência e os ideais, para poderem todos eles frutificar livres de piolhos e outros parasitas, para benefício de todos.
Refiro-me, quando falo de sociedade, àquela que é constituída por todos os cidadãos sem excepção, iguais nos direitos, deveres e oportunidades, tal como em botânica os diferentes ramos, apesar de diferentes pela sua especialidade têm o mesmo valor, contribuindo com a especialidade de cada um para o mesmo fim.
Esta questão esbarra na diversidade de considerações do que é “a Sociedade”. O conceito não é igual para todos os cidadãos, e tal como não foi sempre o que é hoje, acontece que alguns, privilegiados, reclamam a sociedade como o grupo a que pertencem, detentor de poderes muitas vezes relativos. É um anacronismo que se arrasta ao longo de milénios. Na Grécia Antiga, mãe da Democracia só alguns detinham o estatuto de cidadãos. Do espaço democrático, ficavam de fora artesãos, comerciante, estrangeiros e escravos.
Para estes, a democracia era algo circunscrito àqueles poderosos senhores que rivalizavam com os deuses, e a quem apesar de tudo devemos extraordinárias conquistas na filosofia, na arte, no conhecimento.
Esse entendimento histórico manteve manietada até à revolução francesa e ignorada, uma imensa massa de seres humanos que não eram reconhecidos como tal, excluídos de quaisquer direitos, permanecendo até aí, propriedade absoluta dos senhores feudais, e de reis para quem o país não era outra coisa senão uma imensa coutada.
A generalidade dos historiadores, sempre que fez referência ao poder dos Estados, (reinos e impérios), tinha como referentes as classes dirigentes: acções militares, políticas, intrigas… ou, quando culturais, era só como uma moldura para a sua própria grandeza.
Omitiam a incomensurável quantidade de escravos e equiparados, utilizados na edificação de monumentos que agora nos assombram pela sua grandeza, como “obras da Humanidade”. Registavam o nome dos mandantes, omitindo a desumanidade imposta a milhares e milhões a quem saqueavam para acumular os tesouros para as edificações, e àqueles que ficaram estropiados ou que pereceram em acidentes de trabalho, ou ainda aos executados quando tentavam fugir ao cruel jugo que lhes era imposto.
O povo, concretamente aqueles que estiveram na origem das fabulosas riquezas, viveu sempre a condenação de emprestar sem retorno o seu engenho, o esforço e a vida, àqueles que o dominavam.
Está muito longe ainda o surgimento de uma verdadeira democracia, aquela onde não seja possível a qualquer ser humano enriquecer à custa do seu semelhante, onde não possam existir piolhos e sanguessugas, além daquelas que surgiram no processo da evolução.
Uma democracia verdadeira só será possível quando as nações impuserem aos seus governos a prioridade na educação. Auto-sustentação e Educação. Os países como as pessoas, só são verdadeiramente independentes quando forem capazes de produzir pelo menos, duas terças partes daquilo que necessitam.
Mesmo a ciência necessária para instalar um sistema de auto sustentação, só será obtida por objectivos definidos no quadro de uma educação libertadora. Libertadora enquanto esclarecedora da condição humana, das estruturas sociais, da razão de ser do Estado, da indignidade da exploração, e da ascendência de classes sobre outras desprovidas de poder.
Afinal o poder, só tem servido para eternizar a exploração de umas nações pelas outras, e a dos povos que sustentam os seus governantes.
Dizia Jean-Jaques Rousseau – “UMA SOCIEDADE SÓ É DEMOCRÁTICA QUANDO NINGUEM FOR TÃO RICO QUE POSSA COMPRAR ALGUÉM; NINGUÉM TÃO POBRE QUE SE TENHA DE VENDER A ALGUÉM”.
É o velho paradigma da sociedade sem classes? Sem dúvida que essa mesma, se o entendermos em termos de finanças. O conceito de classe sofre da interpretação que lhe atribui “quantidade”.
Consideremos, de outro modo, que “classe” é uma definição qualitativa. E que essa qualidade é referente a valores associados à criatividade e capacidade de criação de riqueza, à elevação cultural do seu semelhante, ao respeito pelas diferenças dos outros, à equidade, à solidariedade, e a todos os valores que sendo comuns às filosofias (religiões incluídas), são condição para a dignidade do Homem. As classes seriam tanto mais elevadas quanto a sua aplicação concreta e universal de uma moral, tão próxima quanto possível do Amor.
Assim, o conceito de classe nunca poderia ser entendido como um nivelamento “por baixo”, o que seria a negação do projecto de civilização universal, que hipocritamente dizem defender, alguns dos que eternizam a ascendência financeira e económica sobre terceiros.
Sabem que a emancipação económica dos explorados, corresponderia a uma barragem, graças á qual, com ciência e tecnologia, o rio que alimentava exclusivamente as estreitas faixas junto ao leito, passaria a levar vida aos desertos, disseminando-a.
Nivelar por cima deve ser o objectivo: Com inteligência, com ética, com solidariedade, pela criação de um novo sentido de responsabilidade do cidadão face à sociedade, à política e aos governos, ao meio ambiente e à própria existência em geral.
É isso em resumo, o que deveria produzir um processo educativo.
A triste realidade é que os governos dos Estados que compartilham o Planeta, não estão minimamente interessados na emancipação dos respectivos cidadãos; em primeiro lugar porque receiam ser apeados das suas criminosas fortunas e mordomias, e em segundo, porque isso retiraria aos povos a paciência (que é uma alegada virtude), a passividade (tão conveniente) e a aceitação do “destino” que lhes foi prescrito alegadamente por Deus, (essa metáfora de extrema utilidade que, sempre legitimou reis e imperadores).
O status quo, o povo amansado, submisso, sem ideais nem ideias, desorientado face à exploração que sobre si cai, aceitando sem reagir o pagamento de dívidas alheias, enteado de uma justiça a quem um dia vendaram os olhos, é o que interessa aos novos governantes (pela mesma “graça de Deus”, embora por decoro (?) já não a invoquem).
Como libertarmo-nos deste jugo?  
Como deveremos reclamar uma verdadeira justiça, o respeito e a dignidade que nos é devida? Qual o exercício que nos falta?
Cada um de nós só por si nunca o poderá conseguir, pese embora que no nosso íntimo, em sonho, em pensamentos solitários, no desabafo com amigos, em emails derramados pela internet, cresça o sentimento de tal necessidade.
Parece que ainda estamos todos à espera de D. Sebastião, na verdade um néscio, imaturo como um pero verde, marioneta de uma nobreza sequiosa de saque e de poder. É esta espera alimentada há mais de quatro séculos, que leva a que um povo manhoso esperançado nos favores de quem pode, na paz podre que lhe abafa a vida e o leva a votar colocando no Poder mistificadores pródigos em promessa, que sabem não poder cumprir, amigos e protectores de ladrões e de vigaristas; povo irresponsável feito de gentalha que se alimenta pelas orelhas, para de seguida se insurgir “respeitosamente”. E voltar a manifestar-se indignado, uma, duas, trinta vezes, sem nada conseguir contra a arrogância dos “donos da sociedade”.
Pacatez e submissão que lhe penetrou até aos ossos instalando-se no ADN, tal foi a eficácia duradoura do jesuitismo em Portugal.
Pombal pôs fim à Companhia de Jesus, mas não foi capaz de apagar a profunda pegada com que calcou a liberdade de pensamento, a expressão da vontade, esmagando ainda em semente a planta da revolta. A doutrina daqueles visava criar um Estado apoiado na “paz social”, tão cara aos que governam o nosso país nos dias de hoje. Personificavam num só, o Estado e a Companhia, exercendo um poder absoluto sobre um povo excluído, acomodado e autómato, massa escravizada sobre que assentaria o almejado “Quinto Império”.
Os jesuítas foram-se enquanto organização poderosa que manobrava nos bastidores fazendo coroar reis seus mandatários, e eliminando na fogueira, todos de quem suspeitassem oposição aos seus desígnios.
Se os homens que agora governam este país forem minimamente instruídos e conhecedores de meia dúzia de factos históricos, como devem estar reconhecidos à extinta escola jesuíta, sobre cuja paisagem desertificada da razão, constroem as suas auto estradas e novos empórios com que alguns, poucos, constroem os seus próprios quintos impérios. 
E o povo, fora os banquetes de futebol qual novel circo romano onde não há pão, fora as peregrinações a Fátima, que movimentos de massas protagoniza para mostrar a sua força potencial (ainda contida)?
Tal como no futebol em que sessenta mil no estádio e um milhão fora dele se extasiam e orgulham com o trabalho de vinte e dois homens em campo, sem partilharem o seu esforço, o povo, passada a euforia das eleições esquece o fervor partidário do momento, para ir encher as praças e avenidas em protestos, a reclamar justiça, a exigir que os “ladrões!” dêem os lugares a outros, sempre no regime de alternância estéril, como paradigma que não consegue libertar-se dos dois pratos da balança, que a convenientemente cega justiça, exibe.
Diferentemente do entusiasmo cómodo com que nestes temos se manifesta no futebol, o povo de Portugal saiu a terreiro três vezes na história do país.
Primeira, na crise de 1383 quando o povo tomou partido activamente contra a perda da independência, influenciando os destinos do país no apoio ao Mestre de Avis.
Quase seiscentos anos depois aderiu, reforçando com o seu apoio activo a implantação da República, porque pela primeira vez na história, contra o poder da Monarquia e da Igreja, o poder político se mostrava tão próximo dos seus anseios; seguindo os ideais de homens cultos, inspirados na revolução francesa, e fermentados na fugaz revolução liberal de 1820, geradora ainda assim, de liberdade de pensamento e de palavra, do direito a uma certa e ainda tímida consciência cívica e consolidada com a reforma de Mouzinho em 1834.
No 25 de Abril o povo voltou a acorrer em massa, a apoiar o golpe que depôs uma ditadura defensora de valores anacrónicos, de cariz obscurantista e opressora ao estilo jesuíta dos séc. XVII e XVIII. Os revolucionários actuaram afirmando a sua condição de “filhos do Povo” após o que, entregando os destinos do país ao Povo Soberano, sessaram aí a generosa intervenção daquele grupo de militares. Quebradas as grilhetas e expulsos os algozes, a Liberdade escorreu como água de uma imensa albufeira que o fascismo barrava, contrariando a dinâmica da natureza.
Na sombra contudo, silenciosa, ou mascarando-se de democrata e por vezes de revolucionária, uma “nomenclatura” de séculos esperou que a fadiga atingisse o povo devido à lentidão das mudanças, e lhe sobreviesse o adormecimento. Na ausência de alertas, e porque a democracia comporta nos seus genes o mal que a fará definhar, “batedores”, “pontas de lança” e “testas de ferro”, têm vindo a ocupar lugares e cargos decisivos, cabendo a uma análise histórica só possível com a distância temporal, se a sua acção significa incompetência, oportunismo, trabalho de sapa, ou todos em simultâneo, para que novos poderes, capitalistas dignos descendentes da escola jesuíta, passem a governar, não só Portugal mas o Mundo, em conluio com outros estados que, com filosofias políticas diferentes mas assentes na ignorância e impotência das sua populações, e numa criminosa acumulação de riquezas, promovem o poderio militar a uma escala nunca vista. Todos envolvidos no xadrez, onde se joga o poder hegemónico sobre a Humanidade.

St Annes On The Sea
06OUT2012
Fernando Fonseca

*Escultor - Professor dos 2º e 3º ciclos (aposentado)

domingo, 14 de outubro de 2012


A VIVANDEIRA DE ST. ANNES ON THE SEA


Vi-a pela primeira vez dois ou três dias depois da minha chegada há cerca de quinze dias.

A população local, a que circula pelas ruas entrando e saindo das lojas da Square, e os que vão ao Seinsbury’s, identifica-se segundo três grupos etários se quisermos ignorar as idades menos significativos que se situam entre eles: Mães pouco mais do que adolescentes a passear de carrinho os seus bebés, adultos de meia-idade apressados, e o grupo que supera os outros em número, as pessoas com mais de cinquenta anos.

Destes últimos, uma percentagem como nunca vi, deslocam-se nos seus carrinhos individuais, veículos silenciosos que não sendo a cadeira de rodas típicas dos deficientes motores restringentes de certo modo da liberdade de movimentação, se apresentam como uma transição para o pequenino automóvel eléctrico à escala dos carrinhos de choque dos parques de diversões.

Dá nas vistas num destes carrinhos, uma senhora no peso dos seus prováveis oitenta anos, pela quantidade de tralha que invariavelmente transporta consigo. A quantidade e profusão são tais, que muitos dos sacos se acumulam escondendo parcialmente a senhora, envolta em camadas sucessivas de blusas e outros agasalhos. É o tipo de pessoa que associamos aos sem-abrigo que transportam consigo todos os seus haveres, comuns nas cidades maiores e que nos parecem sofrer de um certo tipo de indigência. Não será o caso desta que se vai aviar num dos supermercados de St. Annes. Não creio que se trate de uma pessoa sem casa, mas acredito que comporte algum tipo de desarranjo psicológico provavelmente da ordem dos afectos, que a leva a acumular e trazer pendurados no carrinho, o mais variado tipos de objectos-fetiche.

Mas a origem desta crónica foi uma outra figura que passo a referir:

Desde que conheço de vista a “Vivandeira”, já a vi mais de meia dúzia de vezes a calcorrear a agradável zona comercial, centro “buliçoso” desta terra.

Três vezes esteve no Nero ao mesmo tempo que eu, e só hoje, ao reparar melhor na extravagância com que se atavia, me ocorreu o apodo de “vivandeira”.

Mulher moderadamente gorda de cinquenta anos, veste-se garrida em tons de rosa, do pálido ao intenso e ao quase vermelho do gorro, que cobrindo-lhe toda a cabeleira dá uma breve sugestão de barrete frígio. Transporta uma mochila cor-de-rosa e pendurado ao pescoço sistematicamente a saltitar à frente da barriga quando anda, um saco com as dimensões de um A3 a reforçar a atracção que a senhora tem pela cor única do seu aparato.

Não será certamente estranho à alcunha que lhe atribuo, a leitura recente de “Noventa e Três”, em que a mulher que acompanhava os combatentes da revolução, era ao mesmo tempo enfermeira e aguadeira, amiga, irmã, e provavelmente alguma coisa mais; esquadrinhava corajosamente os campos de batalha com o cantil, o saco da ração e o garrote, mais o coração cheio do generoso conforto possível. Circulando no centro da violência mais cruel, antecâmara de loucuras várias, transportaria ela na alma depois da guerra civil, traumas diversos, ou um único, a acoitar todos os sofrimentos que tivessem, durante a guerra, ludibriado a morte?

A vivandeira do Café Nero pede o seu café, senta-se a uma das mesas e debica o biscoito que trouxe consigo. Esta mulher não é uma pobre, uma miserável, a atrair a compaixão de gente mais sensível. Revela perfeita autonomia de si, comportamento e expressão perfeitamente normal. Mas na mochila e no saco da frente transporta talvez segredos, vestígios ocultos que só ela pode decifrar, de qualquer trauma que em tempos, eventualmente a tivesse atingido.

Café Nero, St. Annes on the Sea, 12Out21012






O TEMPO E O QUERER
aos meus alunos do 8º ano




… O Tempo tem uma característica especial; É em simultâneo infinitamente longo, superior às nossas expectativas, mas é também, pela nossa capacidade de o percepcionar, coisa tão breve quanto concebível e tão instante, que condiciona tudo na nossa vida. É tão importante, que não o podemos ignorar como medida fundamental. É mais importante saber que demoramos duas horas numa viagem, do que nomear a quantidade de quilómetros a percorrer. É mais importante saber que dispomos de uma hora para um trabalho do que saber a quantidade de palavras que vão ficar no papel.

É dentro deste grande denominador da nossa vida que temos de situar a nossa vontade, o nosso querer.

E aí, meus amigos, ou queremos ou não queremos. Somos forçados muitas vezes pelas necessidades de gestão da nossa vida, com igual importância, tanto a querer como a não querer. Até porque “não querer”, é também querer não fazer determinada escolha.

Resume-se tudo só ao querer: “querer sim” ou “querer não”.


Como somos pessoas, e porque o cérebro está em produção permanente de lembranças, de ideias novas, ou a resolver certos trabalhos mais práticos, que nos parecem temporalmente difíceis de concretizar, temos de saber escolher; Saber querer o que vamos fazer e como o fazer. E o que queremos mais, somos capazes de fazer; as outras coisas, se o tempo chegar, poderemos fazê-las também.




Fernando Fonseca *


*Escultor - Professor dos 2º e 3º ciclos (aposentado)

NOVENTA E TRÊS

de

Victor Hugo

(Comentário)

 

NOVENTA E TRÊS. O ano horrível da Revolução Francesa.

Aconteceram neste ano as maiores atrocidades que o género humano cometeu, só comparável, embora com diferente fundamentação, aos actos da Inquisição.

Victor Hugo cujos pais viveram a guerra civil, faz-nos, em dois pequenos volumes do seu romance histórico o retrato do país devastado, e dos homens que a coberto dos respectivos ideais assumiam frequentemente comportamentos, que pensamos, poderem ser cometidos unicamente por feras sem alma nem sentimentos, e para quem a vida humana não é merecedora da menor consideração.

Descrevendo pormenorizadamente os lugares, oferece-nos nesse aspecto uma leitura por vezes fastidiosa, pela referência exaustiva desses lugares e dos personagens situados dubiamente entre o histórico e o lendário.

Penso que o faz, para mostrar o imenso confronto entre todas as facções de um povo de armas na mão, naquela charneira da História. História que extravasa da França, espalhando grandiosos ideais pela Europa e pelo mundo.

Daquela torrente de violência desmedida, em que os homens se aniquilaram aos milhares inexoravelmente, com a impiedade com que um rio de lava aniquila sobre o leito que rasga tudo o que nele existe, deveriam surgir por misteriosa dialéctica, os fundamentos da civilização moderna que alicerçou a dignidade do Homem. Como se a abstracção que é a revolução, tivesse uma consciência oculta, de que só a dignificação do homem em cada indivíduo, universalmente, justificaria um bastante perdão para os desmandos e crimes cometidos.

O perdão. Não o esquecimento. Só quem esquece repete. “Noventa e Três”, regista uma grande nódoa para que na História, não fique irremediavelmente esquecida.

Mas Victor Hugo não nos fala da crueldade sem limites sem ao mesmo tempo e sobreposta, nos mostrar uma janela de esperança. E fala do amor, da abnegação, de um supremo bem que apesar de tudo persiste e chega a tocar os corações mais endurecidos pela guerra. Defende que a maldade e a crueldade não são irreversíveis. Enaltece os supremos sacrifícios que o amor de uma mãe, conduz uma frágil mulher, impiedosamente fuzilada e salva pelo mendigo que nada tem a perder nem a ganhar com a guerra, que assume ser-lhe alheia.

Face aos actos de coragem extrema e assunção do risco da vida pelos ideais, coloca no mesmo patamar o camponês enfeudado que dá a vida pelo fidalgo que lhe matou o irmão e o conserva escravo do seu Senhor, do Rei, e de Deus que criou o mundo, a bravura em combate dos homens que defendem a República e os ideais que ela anuncia, e a coragem daquele que acima da própria vida coloca a honra da palavra dada.

Há páginas e capítulos inteiros que nos criam alguma aversão pela inumanidade, e outras que nos enternecem.

A caminho do desenlace, é extraordinário o diálogo sereno entre o condenado e o seu grande amigo, mestre e juiz, que o condena à morte. Diálogo que constitui uma metáfora da encruzilhada que se apresenta ao futuro da República nascente. Opõe o ponto de vista do mestre que advoga um sistema de justiça social inflexível, implacável, baseado na trilogia “Liberdade Igualdade Fraternidade, ao do seu pupilo que com escassas horas para viver, acrescenta a tudo isso um caminho espiritual para que se dignifique e engrandeça o homem culto, solidário e generoso. Este homem que tem encontro marcado com a morte declara serenamente sonhar o futuro. Não é o seu que o preocupa, mas sim o da humanidade.

Quanta elevação! A obra é divina quando supera o autor. O padre Cimourdain criou, educou e alimentou com ideias libertadoras o jovem Gauvain. Amando-o, condenou-o à guilhotina pela honra da palavra dada e em cumprimento da lei. Condenando-o reivindica o mesmo destino.

Gauvain reivindicou a morte por ter traído a lei que subscreveu ao libertar um velho cruel que perante a inocência ameaçada, num rebate de bondade salvou três crianças a horrível morte pelo fogo, perante quatro mil homens impotentes face à fornalha. Libertando-o manifestou ainda respeito pelos seus antepassados aos quais politicamente e opunha, numa afirmação que a sua inimiga não eram os homens mas sim a sua política.

Tal como fiz em “Frutos da Revolução”, transcrevo agora o diálogo final entre o pragmático e o utopista.

Utopia bela a que todo o homem bem formado anseia. Pensamentos utópicos a que não foi dada a oportunidade de espalhar semente.

A guilhotina (sempre o instrumento do mais forte) ceifou do corpo de Gauvain, a cabeça de longos cabelos castanhos onde germinava uma nova aurora que tornaria, porventura, mais brilhantes as luzes da Revolução Francesa.

Utopia que permanece actual, como se lê no diálogo que transcrevo.

 “ Dizia Gauvin:

- Grandes acontecimentos se estão delineando. O que a revolução faz neste momento é misterioso. … Por baixo de um andaime de crueldade, edifica-se um templo de civilização.

- Sim – respondeu Cimourdain. – Deste provisório sairá o definitivo. O definitivo, isto é, o direito e o dever paralelos, o imposto proporcional e progressivo, o serviço militar obrigatório, o nivelamento, nenhum desvio, e acima de todos e de tudo a linha recta da lei. A república do absoluto.

Prefiro-lhe, - disse Gauvain – a república do ideal … Ó mestre em tudo quanto acaba de dizer, onde coloca o desinteresse, o sacrifício, a abnegação, o enlace magnânimo das bem querenças, o amor? Pôr tudo em equilíbrio é bom; pôr tudo em harmonia é melhor.  …é essa a diferença entre um teorema e uma águia.

- Perdes-te nas nuvens.

- Perde-se no cálculo.

- Há sonho na harmonia.

- Há-o também na álgebra.

- Eu queria o homem feito por Euclides.

- E eu – disse Gauvain – queria-o feito por Homero.

… Poesia. Desconfia dos poetas.

- Sim, conheço a frase. Desconfia das aragens, desconfia dos raios, desconfia dos perfumes, desconfia das flores, desconfia das constelações.

- Nada disso dá de comer.

- Quem sabe? A ideia também é alimento. Pensar é comer.

- A república é dois e dois são quatro. Quando dou a cada um o que lhe toca…

- Falta dar-lhe o que não lhe toca. A imensa concessão recíproca que cada um deve a todos e todos a cada um, e que constitui toda a vida social.


Desafio-te a que entres nas aplicações.

- Pois bem. O senhor quer o serviço militar obrigatório. Contra quem? Contra outros homens. Eu não quero serviço militar. Quero a paz. Quer os miseráveis socorridos, eu quero a miséria suprimida. Quere o imposto proporcional. Eu não quero imposto nenhum. Quero a despreza comum reduzida à sua expressão mais simples e paga pelas sobras sociais. … Primeiro suprimamos parasitismos; o parasitismo do padre, o parasitismo do juiz, o parasitismo do soldado. Depois tirem partido das riquezas; lançam o estrume no esgoto, deitem-no no sulco do arado. As três quartas partes do solo são baldios, arroteiem a França, suprimam as pastagens inúteis; dividam as terras comunais. Tenha todo o homem uma terra, e toda a terra um homem. Centuplicarão assim o produto social. A França nesta ocasião, apenas dá aos seus naturais, quatro quilos de carne por ano; bem cultivada alimentaria trezentos milhões de homens, toda a Europa. Utilizem a natureza, essa imensa auxiliar desprezada. Façam trabalhar em seu proveito todas as correntes de ar, todas as quedas de água, todos os eflúvios magnéticos. O globo tem uma rede venosa subterrânea, há nessa rede uma circulação prodigiosa de água, de óleo e de fogo; piquem a veia do globo e façam jorrar essa água para as suas fontes, esse óleo para as suas lâmpadas e esse fogo para os seus lares. Reparem no movimento das vagas, no fluxo e refluxo das marés. Que vem a ser o oceano? Uma enorme força perdida. Como a terra é estúpida! Não aproveitar o oceano!

… E a mulher? Que destino lhe querem dar?

Cimourdain respondeu:

- O que ela tem. Ser a serva do homem.

- Sim, com uma condição.

- Qual vem a ser?

- Que o homem seja servo da mulher.

- Pois pensas isso? O homem servo? Nunca. O homem é senhor. Só admito uma realeza, a do lar. O homem em sua casa é rei.

- Sim, com a condição de a mulher seja nele a rainha.

- Igualdade! Se os dois entes são diversos.

- Disse igualdade, não disse identidade.


Gauvain:

- A minha ideia é esta: Sempre para a frente. Se Deus quisesse que o homem recuasse tinha-lhe posto um olho na parte posterior da cabeça. Olhemos sempre +para o lado da aurora, do desabrochar, do nascimento. O que cai anima o que sobe. O estalar da velha árvore é uma chamada à árvore nova. Cada século fará a sua obra, hoje cívica amanhã humana. Hoje a questão do direito, amanhã a questão do salário. O homem não vive para deixar de ser pago Deus, dando a vida contrai uma dívida o direito é o salário inato; o salário é o direito adquirido.

Cimourdain murmurou: - Andas com rapidez.

- É talvez porque vou um pouco apressado – disse Gouvain sorrindo – e continuou. Ó mestre, eis a diferença entre as nossas duas utopias;

. O senhor quer a caserna obrigatória, eu quero a escola. Fantasia o homem soldado, eu fantasio o homem cidadão. Deseja-o terrível, eu quero-o pensativo. Funda uma república de gládios. Eu fundaria uma república de espíritos.


Absolves o momento presente?

-Absolvo, porque é uma tempestade. Uma tempestade sabe o que faz. Por cada carvalho fulminado, quantas florestas saneadas! A civilização tinha uma peste, este vendaval livra-a dela. Não faz talvez boa escolha, mas poderia fazer o contrário?


Sejamos a sociedade humana. Maior que a natureza. Sim, se nada acrescentam à natureza, para que sair dela? Então contentem-se com o trabalho da formiga e com o mel da abelha. Fiquem o animal trabalhador, em vez de serem a inteligência rainha. Se acrescentarem alguma coisa à natureza serão certamente maiores do que ela. Acrescentar é aumentar; aumentar é engrandecer. A sociedade é a natureza sublimada. Quero tudo quanto falta à colmeia, tudo quanto falta aos formigueiros, os monumentos, as artes, a poesia, os heróis, os génios. Carregar fardos eternos não é a lei do homem. Não, não, não, basta de párias, basta de escravos, basta de forçados, basta de condenados! Quero que um dos atributos do homem seja um símbolo de civilização e um modelo do progresso; quero a liberdade perante o espírito, a igualdade perante o coração, a fraternidade perante a alma. Não, basta de jugo! O homem foi feito não para arrastar cadeias mas para abrir asas. Não quero o homem reptil. Quero a transfiguração da larva em lepidóptero; quero que o verme se transforme numa flor animada e voe. Quero…


- Em que pensas? – perguntou o mestre.

- No futuro. – respondeu.”

Momentos depois a guilhotina abortou o sonho de Gauvain. O mestre, seu amigo e Juiz do tribunal que o condenou, partiu com ele.

 

St. Annes On the Sea, 07out2012

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