quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O GATO SONHADOR



O GATO SONHADOR
conto





- Era uma vez um gatinho sonhador que resolveu ir esperar pelo dia seguinte, E disse aos outros gatinhos:
- Vou esperar por amanhã.
Os outros responderam: - Esperar por amanhã? Quem te disse que o amanhã ia chegar? Que saibamos, não recebeste carta, não vimos ninguém dar-te recados, nem ouvimos anunciar na rádio… vais esperar? E se ele não vier?
O gatinho respondeu: Vai chegar, sim. Eu sei.
E sem ligar mais aos gatos cépticos que estranharam aquela ideia tola, procurou um lugar alto, disposto a esperar. Quando o amanhã chegasse, haveria de ser o primeiro de todos a vê-lo e, recebendo-o, dar-lhe as boas vindas. Haveriam de ficar grandes amigos.
Esperou, esperou, até depois de silenciarem os ruídos da festa que soavam mais espaçados e longínquos. As luzes do bairro apagaram-se quando as pessoas já dormiam, e o gatinho, solitário no lugar escolhido para a espera sobranceiro aos telhados da cidade, depressa se viu envolvido pela noite mais linda que alguma vez imaginara.
O mundo era um conjunto de formas indefinidas e dispersas mergulhadas na penumbra, e por cima, como uma campânula gigantesca, a abóbada do céu estava salpicada de milhões e milhões de estrelas a piscar, umas tão brilhantes que pareciam ali mesmo ao alcance dos seus bigodes, outras nas profundidades do espaço, quase imperceptíveis, parecendo apagar-se por momentos.
O gatinho gostou de imaginar que era único e que as estrelas naquela noite, tinham-se juntado todas para ver o gato que acreditou na vinda do amanhã, contrariamente aos outros que se contentavam com o dia presente. Como aquela gatinha preta que com o seu sotaque, que ele não sabia se era brasileiro ou se era moçambicano, lhe disse: - Ispérá pelo amanhã? xiu… pode ispérá sentado. Sentádjinho ‘viu?
Ir ao encontro do amanhã, predispor-se para receber o dia seguinte, era coisa que não passava por cabeças com juízo. O futuro haveria de chegar, quer se fizesse ou não alguma coisa por isso. Porquê ralar-se? – Era o que pensava toda a gente.
As estrelas são eternas. Nelas está todo o passado e todo o futuro. Foi o que o gatinho sonhador sentiu que as estrelas lhe contavam, não com palavras mais ou menos miadas, mas com pensamentos que se formavam dentro da sua cabeça.
“ Pode ispérá sentado; sentádjinho ‘viu?” martelou a voz da gatinha preta, quando o sono lhe começou a afectar a vigília e as pálpebras se lhe tornaram pesadas. Mas ele não queria adormecer. Não queria perder o espectáculo da noite. E se, quando o amanhã chegasse, o encontrasse a dormir? Tinha vergonha de que isso pudesse acontecer.
Foi quando se lembrou de ouvir dizer, que a gata de Joana Mendes com um olho dorme e com o outro caça ratos.
O nosso gatinho, passou a alternar ora fechando o olho esquerdo, ora o olho direito, como forma de resistir ao sono. Mas fechar os dois, não!
Sabia que os morcegos e as corujas eram os únicos que não dormiam e, ah! As ratazanas, que corriam silenciosas no assalto aos contentores do lixo. Mas esses, não queriam saber mesmo nada do amanhã. Para eles a noite poderia durar infinitamente.
Nestes pensamentos, não se apercebeu de que muito discretamente, os limites da paisagem a leste foi saindo da penumbra, e no céu, lá muito baixo, o contorno do mundo começou a ser desenhado por uma leve claridade.
Tomou consciência da mudança, quando na retina do seu olho vigilante, chocou um brilho como se fosse um diamante a cortar o torpor que teimava em fazê-lo adormecer. Excitado, levantou o olhar para o horizonte e viu, nada mais, nada menos, do que o planeta Vénus que ele julgou ser a mãe de todas as estrelas. E viu-a subir pelo céu, as outras a desviarem-se à sua passagem.
Algo de importante estava a acontecer. O gatinho pôs-se nas quatro patas, alerta, sem o menor resquício de sono. A sua alma cresceu, (até então, ele nem sabia que tinha alma), uma alegria inigualável inundou-lhe o focinho. Atrás da mãe de todas as estrelas, o céu foi ficando azul, de um azul lindíssimo luminoso e puro, que lhe provocou uma onda de emoção e alegria.
O Dia Seguinte estava a chegar e ele assistia à sua chegada. Ruídos lá em baixo na cidade, indicavam que já havia gente nas ruas, mas para aqueles, era um dia igual aos outros, rotineiro, chato, sem nada de novo.
No alto, o gatinho, julgou ouvir toques de trombeta instantes antes de o sol lhe acariciar os bigodes, o seu calor a subir-lhe o focinho, entre os olhos, a passar-lhe o alto da cabeça entre as orelhas, percorrer-lhe o lombo com uma carícia que o fez arquear-se, sentindo em cada pêlo um raio de sol, até aquela manchinha branca na ponta da cauda erguida.
Só então fechou os olhos para gozar plenamente a carícia do seu novo amigo.
Então, reparou que o amanhã já era hoje; que todos os dias, antes, foram futuro.
Da sua pose heróica desceu tranquilamente, percorrendo os caminhos que o sol ia alumiando e aquecendo. E juntos, entraram na vida da cidade.


Fernando Fonseca

ÀS QUINTAS E DOMINGOS OS PÁSSAROS NÃO CANTAM



ÀS QUINTAS E DOMINGOS OS PÁSSAROS NÃO CANTAM


O Tio Zé Augusto, com os seus setenta e um anos feitos em Maio, é um homem feliz.
Nascido e criado ali no sítio, tirando a ida às sortes praticamente nunca saiu do seu lugar, com as abas da serra a nascente e do lado do sol posto, o mar.
A planura toda (a charneca, dizia-se antes), conhece ele bem, entre Odeceixe e o Cavaleiro, e se a sua experiência não lhe permite opinião, sobre o ser e o viver de outros lugares, do seu chão, das suas vaquinhas, das sementeiras e dos matos, conhece ele as virtudes.
“Na natureza não há nada que não tenha uma serventia” diz ele a propósito da coisa que para nós, pareceria mais insignificante.
Maravilhado com a sua erudição simples e telúrica, levei-o um dia num passeio, Relva Grande acima, a descer as ladeiras “a pique” por caminhos de medronheiros, até às várzeas da Foz da Perna Seca, vis-a-vis com a Fóia, agigantada de tão perto.
“ Ah, punhão! Como é que esta gente pode viver aqui no meio destas ladeiras, só brenhas no fundo destes barrancos?” e, homem acostumado a virar com a aiveca,  as areias leves da charneca, acrescentou: “ A mim, nem que me pagassem bem pago!”.
Voltamos às Taliscas à boca da noite. Taliscas é o monte do Tio Zé Augusto e da Tia Rosa, mulher engenhosa como há poucas. O forno do pão foi ela que o fez com as suas mãos, perante o olhar céptico de muita gente.
O monte deles, casinha pequena à dimensão do casal, está enquadrado numa clareira do Barranco do Carvalhal sumido da planura. A quinze metros da casa no final do declive, passa o ribeirinho entre canaviais, vimes e seisseiros. Na encosta soalheira é ladeado por uma faixa de montado e na ladeira sombria, abundam os carvalhos e os medronheiros. Na zona de contacto do barranco com a charneca, estevais com tês metros de altura.
O Barranco estende-se cerca de oito quilómetros por ali abaixo até ao mar, acabando num areal desassombrado, proporcionando uma faixa em que as características da serra e da planície se interpenetram, dando origem a um sistema complexo com abundância de exemplares tanto de flora como de fauna, com destaque para raposas, texugos, e doninhas, ouriços cacheiros, toupeiras, e lagartos, cágados, cobras de água, bordalos e rãs, etc., etc., etc. e onde as aves residentes são muitas e variadas, podendo observar nas épocas próprias, pintassilgos, pardais, piscos e felosas, cartaxos, cotovias, arvéolas e picanços, (duas espécies) pegas, gaios, cucos e rolas, corvos, gralhas, e abelharucos em bandos coloridos e barulhentos, referindo em tempo frio os abibes, algarvões e abetardas, e tantos mais.
Mas de todos, aquele que o Tio Zé Augusto mais gosta, é o rouxinol que todos os anos ali em frente no canavial, passa as noites inteirinhas a cantar e a cantarolar um repertório sem fim, alegrando as noites monótonas dos ralos, salpicadas do pio dos mochos e exclamações das corujas, atenuando as insónias próprias da idade, e sobretudo, para contento daquele homem simples e bom, que conhece a terra com o ninguém e a ama com devoção.
Assim todos amassem a terra e aquilo que nela vive, e haveria muitos mais “Barrancos do Carvalhal”, para alegria dos que tivessem a bênção de lá viver, e para encanto dos que a visitassem.
Infelizmente, entre Sines e Aljezur, não conheço outro reduto da Natureza tão rico, um dos poucos ecossistemas que poderá ainda considerar-se intacto.
Nunca falei disso ao Tio Zé Augusto, mas de cada vez que pela abertura da caça, ouço ecoar pelo barranco os disparos consecutivos das caçadeiras contra tudo o que voa ou que se esgueira entre pastos, tenho um desgosto enorme e um receio ainda maior, de que este pedaço de paraíso esteja condenado a desaparecer, como acontece a tantos outros de que já só se pode dizer “Era uma vez…”
Continuarão o Tio Zé Augusto e a Tia Rosa a ouvir todas as noites o seu amigo rouxinol?
É que aos domingos e quintas-feiras, já não se ouvem os pássaros cantar.

Zambujeira do Mar 08DEZ87


Passaram vinte anos.
À data deste escrito ainda não tinha começado a invasão de estufas 

A SAIA DA FILOMENA





A SAIA DA FILOMENA

Filomena recostou-se na cama sem sono. Os braços cruzados atrás da cabeça, olhava para a janela onde a chuva tocada pelo vento batia insistentemente como a pedir que a deixasse entrar.
Aluz dos relâmpagos, atravessando a vidraça, dava ao quarto um aspecto fantástico enquanto os trovões rebolavam preguiçosamente como os bidões na calçada da minha aldeia, tornando mais funda a escuridão daquela madrugada.
- Se amanhã não chover, vou tingir o pano para fazer uma saia. - Pensou ela lembrando-se das mulheres que tingiam panos lá embaixo junto ao rio.
-Vou fazer uma, toda azul. – Disse em voz alta como que a registar a decisão tomada. E a pensar nisso adormeceu.
Quando chegou ao rio, a água espalhava-se pelas margens, pois o leito era demasiado pequeno para conter a enxurrada e os pobres peixes, com as guelras cheias de lama e outros detritos, vinham à tona como se precisassem de tomar fôlego ou se quisessem admirar o solm que voltava radioso após a tempestade da noite.
Descalçou-se para não magoar a relva, e esta pudesse com ternura acariciar-lhe os pés.
- Bom dia, Relvinha. Que rico sol!
- Olá Mena. Sim, está um quentinho tão bom. – Respondeu a sua amiga Relva enquanto lhe fazia cócegas nos pés.
- Ai, estejam quietas. Não me façam cócegas nos pés. Ah, ah, ah. Pronto, já chega!
E riram todas. A Filomena e a Relva toda em coro.
As mulheres já tinham começado a trabalhar e ensinaram Filomena como se tingia.
Mergulham-se os panos na tinta, espremem-se, mergulham-se outra vez…
- Não te esqueças, Filomena. Quanto mais aguado estiver o índigo e mais vezes se espremer, mais duração tem a cor.
- Então quero uma  toda azul.
Mergulharam o pano e espremeram várias vezes.
A Filomena disse toda contente:
- Agora vou secar. Relvinha! Posso estender o meu pano novo em cima de você, para o sol o secar?
A Relva era de verdade amiga dela e deixou-a esticar o pano ali mesmo ao pé do rio. Depois, voltou para ver como as mulheres faziam os atados para obter padrões diferentes.
Entretanto os coitadinhos dos peixes lá no rio, estavam aflitíssimos com a água suja, quando um deles viu mesmo ali ao lado uma piscina com água muito limpinha, toda azul. Gritou:
- Manos! Ali há água limpa. Vamos saltar para lá? – E saltou, logo seguido de outros nove ou dez, que não esperaram segundo convite.
- Op, op e zás!
-Ai!
- Ui!
- Ai, ai! Isto não é água. Deve ser uma miragem. - Disse um deles, muito indignado.
- É verdade. Vamos mas é para o rio. Sempre é melhor água suja do que água a fingir. – e saltaram todos para a corrente.
Ouvindo aquele alarido, Filomena virou-se para o sítio do pano, mesmo a tempo de os ver regressar ao rio. Correu para o estendal e o que viu?
No lugar onde os peixes tinham caído ficaram marcas, como se o pano tivesse sido carimbado dez vezes.
- E esta, hein?
Filomena acordou, abriu a janela, respirou o ar fresco da manhã e deixou que o sol lhe beijasse os lábios. Sentindo-se muito bem, disse decidida;
- Vou fazer um pano azul com dez peixes estampados.

Bissau, 1980
Fernando Fonseca

EUROPA



EUROPA

Claro que gostaria de viver numa Europa onde qualquer cidadão fosse qual fosse a região de origem, sentisse que estava na sua terra.
Essa foi a ideia de Europa que se nos entranhou nos sentidos, quando após a 2ª Guerra, com a destruição em larga escala provocada pela agressividade hegemónica do Nacional Socialismo de Hitler, pensadores visionários e estadistas semearam a ideia de unir num grande sentimento comum, todas as populações, do grande puzzle constituído pelos países do ocidente europeu, única maneira de acabar com as agressões entre os respectivos estados.
Não deverá ter sido alheio a este desejo, e o conhecimento do processo que na América do Norte constituiu os EUA, nem a acção desenvolvida por Gandhi que conseguiu reunir numa grande nação uma miscelânea de povos diferentes que povoavam a India, com o duplo objectivo de eliminar o colonialismo britânico e construir uma identidade nacional.
Só a construção de uma unidade dos povos europeus poderia assegurar a paz, pondo fim a um belicismo presente nos mais de dois mil anos de História europeia, mas diferentemente das grandes campanhas que anteriormente pretendiam uma Europa num só estado sob o domínio de um conquistador guerreiro, como o foi a invasão de Átila até ao nazismo de Hitler passando pelo carismático Napoleão Bonaparte, a construção de uma Europa Humanista, solidária, coesa, só seria possível se fosse realizada sob ideias de uma comunhão de interesses, e na prossecução da dignidade dos povos que a compunham.
Ainda por sarar as feridas da última guerra, Jean Gabin e outros alimentando a mesma utopia, apontaram o objectivo elevado em termos económicos e de justiça social, éticos e culturais, todos, valores associados às grandes conquistas dos povos desde o Sec. XIX. O Projecto, que no seu cerne teria de considerar aquilo que constitui verdadeiramente as nações, os seus povos, só poderia ser a União de uma Europa dos Povos.
Foi esse o sonho que nos fizeram sonhar, além de Jean Gabin, Willy Brandt, Helmut Khol, Jaques Delors, só para citar os mais mediáticos. O nosso Mário Soares, na mesma linha de ideais, quis promover a integração de Portugal no movimento unificador.
Mas… Não há revolução de puros ideais que consiga manter a pureza inicial.
Há sempre os que, perante uma mudança anunciada se apressam a mudar de pele como o camaleão, e os inúteis que sem terem feito de positivo na vida, correm para a frente para ficar com os melhores lugares.
Se por um lado os homens que governam os países europeus acreditaram que era esse o futuro, depressa se expandiram os portentados económicos graças aos avanços tecnológicos, e aos negociantes de dinheiro, que tomaram de assalto os lugares-chave da acção política, passando a mandar o poderio financista.
Salvo honrosas excepções a generalidade dos políticos sob a capa de democratas, actuam como testas de ferro dos interesses capitalistas. Veja-se a cobertura que muitos deputados europeus estão a dar à vontade de multinacional Monsanto para obter a patente legal de sementes que são património da Humanidade de modo a obter o controlo da produção de alimentos à escala global.
Por outo lado a obsceno rol de mordomias e compensações que usufruem, nega o princípio da moralidade da lealdade e da solidariedade face à degradação económica que grassa nos seus países.
Contam-se pelos dedos das mãos as medidas educativas para a criação de mentalidades solidárias entre os povos de diversas etnias, tendências culturais ou religiosas. Contrariamente mantêem-se mentalidades nacionalistas, revanchistas e xenófobas. Um panorama que serve os interesses dos grandes grupos económicos, na medida em que obsta ao entendimento harmoniosos das várias nações europeias.
São os grandes grupos económicos quem dita as linhas condutoras da política comum, e contraditoriamente são os dois países mais destruídos com a guerra e que mais devem a sua recuperação aos estados solidários, e aos trabalhadores que ali se deslocaram para co o seu esforço reerguerem a grandeza anterior, manifestam agora com arrogância para com os mais pobres, sinais de quererem subjugar aqueles que tanto os ajudaram visando agora lucrar com os empréstimos destinados a “salvar” as economias periféricas.
Quererão eles agora conseguir pelo dinheiro o que Napoleão não conseguiu pelas armas nem Hitler pela eliminação de uns e a escravização de todos os outros que não tendo afinidades étnicas com os germanos, eram considerados impuros e inferiores?
Pelas considerações acima apresentadas penso que só um movimento Pan-Europeu de cidadãos esclarecidos, e liderados pelos valores universais da solidariedade e da equidade social, como por exemplo próximo o da Noruega, conseguirá alterar esta política fomentadora do desemprego, e por consequência da miséria que facilita a sujeição aos desígnios daquela gente.
Há que lembrar a História, para não repetir erros no futuro.

S. Teotónio24Nov 2011

CAIM (de José Saramago)







CAIM (de José Saramago)

(Comentário motivado pela leitura do livro)



Acabei esta noite de ler Caim.
Por razões que não têm a ver só, com as características da escrita de Saramago que muita gente refere como um entrave à leitura até ao fim das suas obras, mas por outras que me respeitam, foi dos seus livros, o primeiro que consegui ler de fio a pavio, com um prazer de que não suspeitaria ao começar a leitura.
Surpreendeu-me o gozo com que, julgo eu, Saramago escreveu, contando aquela história. O humor, a ironia, e, logo à primeira página não a surpresa, mas antes a confirmação do desassombramento com que o autor usa a sua liberdade de pensador para questionar a alegada justeza dos chamados “misteriosos desígnios de Deus”.
Penso que os dogmas são abortivos do desenvolvimento do raciocínio na medida em que amputam conhecimento, e que, pelo contrário, o exercício da razão traz consigo mais sabedoria e um melhor uso da inteligência.
Quanto aos dogmas e a todos os assuntos, cuja discussão é proibida ou simplesmente desaconselhada, é fácil de entender como servem primorosamente interesses ditatoriais, com o seu cortejo de sujeições e de submissão incondicional. Estão manifestamente presentes nas invocações fundamentalistas da actualidade. Em contrapartida, o pensamento e a discussão das questões subjacentes aos dogmas, abrem-se à diversidade de pontos de vista, e portanto à aceitação das diferenças, sejam elas quais forem.
Os dogmas protegem as ditaduras, enquanto a discussão livre e em liberdade é potenciadora de princípios e de práticas democratizantes.
É este aspecto, no meu ponto de vista, que constitui o enquadramento filosófico onde se insere a narrativa de Caim.
O tão pouco que aprendi acerca de Caim, foi-me inculcado em aulas de catequese que me foram impostas na idade em que reflexão era algo inexistente, que só viria a revelar-se num futuro longínquo.
As apreensões que se fazem naqueles verdes anos, pintadas em alto contraste a preto e branco, de sim ou não, de quem não é a favor é contra, são pela sua singeleza altamente marcantes, ficando presentes como padrões para toda a vida. Tanto, quanto nunca poderão ser questionadas.
É naquela fase de crescimento que as igrejas instilam o temor de deus. Poderiam ensinar a compreensão da sua essência, mas isso, ninguém sabe o que seja. O que fica marcado na matriz das crianças é que Deus não é para brincadeiras, mesmo quando simultânea e paradoxalmente o anunciam como a essência do Amor.
Saramago especulou sobre esta ideia dúplice de Terror e Amor. Mais terror do que amor, numa leitura panorâmica do Antigo Testamento.
Entendo o que o levou a questionar esta dualidade inquestionável.
Vi, a dado passo, como foi que Caim se transfigurou de figura bíblica e mitológica, porque não histórica, num homem do mundo consciente dos seus defeitos, crítico, e assim liberto e livre, mau grado ver-se amiúde colocado perante situações imprevistas, manancial de oportunidades para fundamentar a sua crítica cada vez mais clara ao comportamento do senhor.
Inserido em reais cenários bíblicos, Saramago transfigura-o num homem simultaneamente actual, não só pela referência a conceitos e artefactos do nosso quotidiano, como pela actualidade do debate que propõe, e constitui o instrumento ideal para a crítica de Saramago.
Vi como Caim, nos seus avanços e recuos no tempo, (ficção actual), configurava um Homem conhecedor da história da humanidade, cujo testemunho do passado lhe permitia antever o futuro, até que a certo ponto, por desespero, e sobretudo por desacreditar nas competências do Senhor, decidiu interferir nos seus desígnios.
O seu percurso, desde o acto de barbárie para com Abel como reacção a uma incompreensível e inaceitável preferência, pela oferenda do irmão aceite em detrimento da sua, ofertada com igual devoção, os seus testemunhos de “Justiças” inexplicavelmente criminosas aos seus olhos, (insondáveis desígnios de Deus?), tendo sido sucessivamente Arquimedes, Copérnico e outros homens de ciência, e, sem deixar de ser o vulgar almocreve foi também o filósofo e o místico, na medida em que, primeiro junto dos anjos e finalmente com o senhor, questionou ao mais alto nível a natureza humana, “obra-prima” de Deus.
Carismática, foi a tentativa de Deus ao reconhecer o falhanço, decidir recomeçar o seu projecto para a humanidade.
Se tomarmos o dilúvio literalmente, como sempre foi prática da Igreja através dos seus ministros e dos seus catequistas, modo interpretativo de que agora acusam Saramago, está visto que, este recomeço que pretende reportar-nos a todos como descendentes de Noé, se traduz num monumental falhanço.
Ou, retomando a parábola da aposta entre Deus e Satã, seremos nós de novo, bagos de feijão em cima de uma reles mesa de taberna?
Fernando Pessoa disse, em Mensagem. - Deus não é apenas criador, é criatura, fonte de erros. ( *)
Acredito que seria para evitar nova frustração, tanto aos homens como ao próprio Deus, que Saramago impeliu Caim aos crimes perpetrados (supostamente), enquanto a arca derivava num mundo alagado.

17Nov2009
Fernando Fonseca