segunda-feira, 23 de março de 2020

CAIM





CAIM (de José Saramago)

(Comentário motivado pela leitura do livro)



Acabei esta noite de ler Caim.
Por razões que não têm a ver só, com as características da escrita de Saramago que muita gente refere como um entrave à leitura até ao fim das suas obras, mas por outras que me respeitam, foi dos seus livros, o primeiro que consegui ler de fio a pavio, com um prazer de que não suspeitaria ao começar a leitura.
Surpreendeu-me o gozo com que, julgo eu, Saramago escreveu, contando aquela história. O humor, a ironia, e, logo à primeira página não a surpresa, mas antes a confirmação do desassombramento com que o autor usa a sua liberdade de pensador para questionar a alegada justeza dos chamados “misteriosos desígnios de Deus”.
Penso que os dogmas são abortivos do desenvolvimento do raciocínio na medida em que amputam conhecimento, e que, pelo contrário, o exercício da razão traz consigo mais sabedoria e um melhor uso da inteligência.
Quanto aos dogmas e a todos os assuntos, cuja discussão é proibida ou simplesmente desaconselhada, é fácil de entender como servem primorosamente interesses ditatoriais, com o seu cortejo de sujeições e de submissão incondicional. Estão manifestamente presentes nas invocações fundamentalistas da actualidade. Em contrapartida, o pensamento e a discussão das questões subjacentes aos dogmas, abrem-se à diversidade de pontos de vista, e portanto à aceitação das diferenças, sejam elas quais forem.
Os dogmas protegem as ditaduras, enquanto a discussão livre e em liberdade é potenciadora de princípios e de práticas democratizantes.
É este aspecto, no meu ponto de vista, que constitui o enquadramento filosófico onde se insere a narrativa de Caim.
O tão pouco que aprendi acerca de Caim, foi-me inculcado em aulas de catequese que me foram impostas na idade em que reflexão era algo inexistente, que só viria a revelar-se num futuro longínquo.
As apreensões que se fazem naqueles verdes anos, pintadas em alto contraste a preto e branco, de sim ou não, de quem não é a favor é contra, são pela sua singeleza altamente marcantes, ficando presentes como padrões para toda a vida. Tanto, quanto nunca poderão ser questionadas.
É naquela fase de crescimento que as igrejas instilam o temor de deus. Poderiam ensinar a compreensão da sua essência, mas isso, ninguém sabe o que seja. O que fica marcado na matriz das crianças é que Deus não é para brincadeiras, mesmo quando simultânea e paradoxalmente o anunciam como a essência do Amor.
Saramago especulou sobre esta ideia dúplice de Terror e Amor. Mais terror do que amor, numa leitura panorâmica do Antigo Testamento.
Entendo o que o levou a questionar esta dualidade inquestionável.









Vi, a dado passo, como foi que Caim se transfigurou de figura bíblica e mitológica, porque não histórica, num homem do mundo consciente dos seus defeitos, crítico, e assim liberto e livre, mau grado ver-se amiúde colocado perante situações imprevistas, manancial de oportunidades para fundamentar a sua crítica cada vez mais clara ao comportamento do senhor.
Inserido em reais cenários bíblicos, Saramago transfigura-o num homem simultaneamente actual, não só pela referência a conceitos e artefactos do nosso quotidiano, como pela actualidade do debate que propõe, e constitui o instrumento ideal para a crítica de Saramago.
Vi como Caim, nos seus avanços e recuos no tempo, (ficção actual), configurava um Homem conhecedor da história da humanidade, cujo testemunho do passado lhe permitia antever o futuro, até que a certo ponto, por desespero, e sobretudo por desacreditar nas competências do Senhor, decidiu interferir nos seus desígnios.
O seu percurso, desde o acto de barbárie para com Abel como reacção a uma incompreensível e inaceitável preferência, pela oferenda do irmão aceite em detrimento da sua, ofertada com igual devoção, os seus testemunhos de “Justiças” inexplicavelmente criminosas aos seus olhos, (insondáveis desígnios de Deus?), tendo sido sucessivamente Arquimedes, Copérnico e outros homens de ciência, e, sem deixar de ser o vulgar almocreve foi também o filósofo e o místico, na medida em que, primeiro junto dos anjos e finalmente com o senhor, questionou ao mais alto nível a natureza humana, “obra-prima” de Deus.
Carismática, foi a tentativa de Deus ao reconhecer o falhanço, decidir recomeçar o seu projecto para a humanidade.
Se tomarmos o dilúvio literalmente, como sempre foi prática da Igreja através dos seus ministros e dos seus catequistas, modo interpretativo de que agora acusam Saramago, está visto que, este recomeço que pretende reportar-nos a todos como descendentes de Noé, se traduz num monumental falhanço.
Ou, retomando a parábola da aposta entre Deus e Satã, seremos nós de novo, bagos de feijão em cima de uma reles mesa de taberna?
Fernando Pessoa disse, em Mensagem. - Deus não é apenas criador, é criatura, fonte de erros. ( *)
Acredito que seria para evitar nova frustração, tanto aos homens como ao próprio Deus, que Saramago impeliu Caim aos crimes perpetrados (supostamente), enquanto a arca derivava num mundo alagado.

17Nov2009
Fernando Fonseca