terça-feira, 22 de janeiro de 2019


A CEGONHA GORDA


A Primavera, próspera no seu auge, apresentava uma paleta de variadíssimos verdes, salpicados pelo vibrante cromatismo das flores brancas das magarças, das papoilas de esteva, o amarelo dos papilhos e das calêndulas, o rosa dos cardos, do roxo do suajo e do rosmaninho, do azul intenso do morrião. E do rubro das papoilas.
Na charneca extensa viviam muitas espécies das várias classes de animais. Grilos, escaravelhos, joaninhas e carochas; cobras, lagartos e lagartixas; os sapos e as rãs dos charcos; coelhos, lebres e texugos, raposas, e lobos até, além de pássaros, passarinhos e passarões. Cegonhas não havia.
Um belo dia, apareceu distante, como que por magia, um pontinho no céu que cresceu, cresceu ganhando longas asas a planar quietas suportando a leveza esguia da primeira cegonha.
Os largos círculos sobre a paisagem, foram-se tornando mais fechados, enquanto descendo, a ave se aproximava do solo com o vagar e a elegância tão característica das cegonhas.
Os animais que a viram chegar nunca tinham presenciado porte tão altivo e andar cerimonioso, e ficaram impressionados com a envergadura das suas asas e as longas pernas com que iniciou um passeio tranquilo.
Perdizes e codornizes, calhandras, arvéolas e pardais, pássaros do chão e outros que tais, desviaram-se abrindo alas para personagem tão importante. Não voava ela tão alto como as águias reais?
Perante tamanha e inesperada reverência, a recém-chegada interpretou a atitude do colectivo, como reconhecimento devido às altas estirpes e sentindo-se de uma espécie privilegiada, julgou-se soberana daquele paradisíaco território que acabara de descobrir.
Répteis, batráquios, grilos e gafanhotos, não tardaram a descobrir que para ela, não constituíam mais do que a base da sua alimentação. Mas aceitaram o seu destino com se fosse uma determinação divina. Durante um ano, a cegonha reinou dona e senhora da inesgotável charneca. Até que, tendo ouvido falar daquele eldorado, outras cegonhas começaram a chegar ao território.
A primeira, privada da sua condição ímpar, mais do que incomodada, sentiu-se prejudicada. Fez saber às recém-chegadas que designou como imigrantes, que aquele


país lhe pertencia a ela. E impôs-lhes um imposto na forma de um quinhão das suas caçadas se quisessem viver no lugar, que era seu pelo direito de descoberta.
Porque amparada na amedrontadora força da sua arrogância e poder, ainda que falso, as outras cegonhas aceitaram a condição, até porque, não seria uma rã a menos por cada uma delas, que lhes faria diferença. Uma rã, um lagarto, um grilo, um ralo, ou um simples ratinho de campo.
A dona da charneca, como ela se fazia lembrar permanentemente, perdeu o hábito dos seus passeios de caça. Permanecia na contemplação dos súbditos que interrompiam as suas deambulações para lhe trazer o imposto ao ninho mais alto, na mais alta árvore das redondezas. Comodamente instalada, sem precisar de trabalhar, foi, sem dar por isso, engordando. Engordou, engordou, tornando-se pesada e lenta.
Um dia, projectou o seu soberano corpo no espaço e, importante, pousou na campina vermelho vivo da erva azeda.
Calhou que nesse dia, um bando de raposas cruzasse o território à caça de animais incautos. Os coelhos refugiaram-se nas tocas, as perdizes levantaram ruidoso voo a dar o alerta às outras aves. As codornizes e os faisões optaram por ficar imóveis, camuflados nos pastos; as cegonhas alarmadas pelas ruidosas asas das perdizes, correram lestas a ganhar balanço para, num sobressaltado voo, escaparem às predadoras. A sua leveza, amplas asas e corpo esguio, cortaram o ar permitindo-lhes a salvação.
A dona do território, gorda e pesada pelos privilégios da sua senhoria, balanceou-se numa corrida trôpega, mas não foi capaz de levantar voo.
Foi um dia memorável para as raposas. E uma lição para os animais que compreenderam porque é que a cegonha não se salvou.

Alto das Taliscas 25Abr2016

Sem comentários:

Enviar um comentário