domingo, 14 de outubro de 2012


A VIVANDEIRA DE ST. ANNES ON THE SEA


Vi-a pela primeira vez dois ou três dias depois da minha chegada há cerca de quinze dias.

A população local, a que circula pelas ruas entrando e saindo das lojas da Square, e os que vão ao Seinsbury’s, identifica-se segundo três grupos etários se quisermos ignorar as idades menos significativos que se situam entre eles: Mães pouco mais do que adolescentes a passear de carrinho os seus bebés, adultos de meia-idade apressados, e o grupo que supera os outros em número, as pessoas com mais de cinquenta anos.

Destes últimos, uma percentagem como nunca vi, deslocam-se nos seus carrinhos individuais, veículos silenciosos que não sendo a cadeira de rodas típicas dos deficientes motores restringentes de certo modo da liberdade de movimentação, se apresentam como uma transição para o pequenino automóvel eléctrico à escala dos carrinhos de choque dos parques de diversões.

Dá nas vistas num destes carrinhos, uma senhora no peso dos seus prováveis oitenta anos, pela quantidade de tralha que invariavelmente transporta consigo. A quantidade e profusão são tais, que muitos dos sacos se acumulam escondendo parcialmente a senhora, envolta em camadas sucessivas de blusas e outros agasalhos. É o tipo de pessoa que associamos aos sem-abrigo que transportam consigo todos os seus haveres, comuns nas cidades maiores e que nos parecem sofrer de um certo tipo de indigência. Não será o caso desta que se vai aviar num dos supermercados de St. Annes. Não creio que se trate de uma pessoa sem casa, mas acredito que comporte algum tipo de desarranjo psicológico provavelmente da ordem dos afectos, que a leva a acumular e trazer pendurados no carrinho, o mais variado tipos de objectos-fetiche.

Mas a origem desta crónica foi uma outra figura que passo a referir:

Desde que conheço de vista a “Vivandeira”, já a vi mais de meia dúzia de vezes a calcorrear a agradável zona comercial, centro “buliçoso” desta terra.

Três vezes esteve no Nero ao mesmo tempo que eu, e só hoje, ao reparar melhor na extravagância com que se atavia, me ocorreu o apodo de “vivandeira”.

Mulher moderadamente gorda de cinquenta anos, veste-se garrida em tons de rosa, do pálido ao intenso e ao quase vermelho do gorro, que cobrindo-lhe toda a cabeleira dá uma breve sugestão de barrete frígio. Transporta uma mochila cor-de-rosa e pendurado ao pescoço sistematicamente a saltitar à frente da barriga quando anda, um saco com as dimensões de um A3 a reforçar a atracção que a senhora tem pela cor única do seu aparato.

Não será certamente estranho à alcunha que lhe atribuo, a leitura recente de “Noventa e Três”, em que a mulher que acompanhava os combatentes da revolução, era ao mesmo tempo enfermeira e aguadeira, amiga, irmã, e provavelmente alguma coisa mais; esquadrinhava corajosamente os campos de batalha com o cantil, o saco da ração e o garrote, mais o coração cheio do generoso conforto possível. Circulando no centro da violência mais cruel, antecâmara de loucuras várias, transportaria ela na alma depois da guerra civil, traumas diversos, ou um único, a acoitar todos os sofrimentos que tivessem, durante a guerra, ludibriado a morte?

A vivandeira do Café Nero pede o seu café, senta-se a uma das mesas e debica o biscoito que trouxe consigo. Esta mulher não é uma pobre, uma miserável, a atrair a compaixão de gente mais sensível. Revela perfeita autonomia de si, comportamento e expressão perfeitamente normal. Mas na mochila e no saco da frente transporta talvez segredos, vestígios ocultos que só ela pode decifrar, de qualquer trauma que em tempos, eventualmente a tivesse atingido.

Café Nero, St. Annes on the Sea, 12Out21012

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