A VIVANDEIRA DE ST. ANNES ON THE SEA
Vi-a pela primeira vez dois ou três dias depois da minha
chegada há cerca de quinze dias.
A população local, a que circula pelas ruas entrando e saindo
das lojas da Square, e os que vão ao Seinsbury’s, identifica-se segundo três
grupos etários se quisermos ignorar as idades menos significativos que se
situam entre eles: Mães pouco mais do que adolescentes a passear de carrinho os
seus bebés, adultos de meia-idade apressados, e o grupo que supera os outros em
número, as pessoas com mais de cinquenta anos.
Destes últimos, uma percentagem como nunca vi, deslocam-se
nos seus carrinhos individuais, veículos silenciosos que não sendo a cadeira de
rodas típicas dos deficientes motores restringentes de certo modo da liberdade
de movimentação, se apresentam como uma transição para o pequenino automóvel
eléctrico à escala dos carrinhos de choque dos parques de diversões.
Dá nas vistas num destes carrinhos, uma senhora no peso dos
seus prováveis oitenta anos, pela quantidade de tralha que invariavelmente
transporta consigo. A quantidade e profusão são tais, que muitos dos sacos se
acumulam escondendo parcialmente a senhora, envolta em camadas sucessivas de
blusas e outros agasalhos. É o tipo de pessoa que associamos aos sem-abrigo que
transportam consigo todos os seus haveres, comuns nas cidades maiores e que nos
parecem sofrer de um certo tipo de indigência. Não será o caso desta que se vai
aviar num dos supermercados de St. Annes. Não creio que se trate de uma pessoa
sem casa, mas acredito que comporte algum tipo de desarranjo psicológico
provavelmente da ordem dos afectos, que a leva a acumular e trazer pendurados
no carrinho, o mais variado tipos de objectos-fetiche.
Mas a origem desta crónica foi uma outra figura que passo a
referir:
Desde que conheço de vista a “Vivandeira”, já a vi mais de
meia dúzia de vezes a calcorrear a agradável zona comercial, centro “buliçoso”
desta terra.
Três vezes esteve no Nero ao mesmo tempo que eu, e só hoje,
ao reparar melhor na extravagância com que se atavia, me ocorreu o apodo de
“vivandeira”.
Mulher moderadamente gorda de cinquenta anos, veste-se
garrida em tons de rosa, do pálido ao intenso e ao quase vermelho do gorro, que
cobrindo-lhe toda a cabeleira dá uma breve sugestão de barrete frígio. Transporta
uma mochila cor-de-rosa e pendurado ao pescoço sistematicamente a saltitar à
frente da barriga quando anda, um saco com as dimensões de um A3 a reforçar a
atracção que a senhora tem pela cor única do seu aparato.
Não será certamente estranho à alcunha que lhe atribuo, a
leitura recente de “Noventa e Três”, em que a mulher que acompanhava os
combatentes da revolução, era ao mesmo tempo enfermeira e aguadeira, amiga,
irmã, e provavelmente alguma coisa mais; esquadrinhava corajosamente os campos
de batalha com o cantil, o saco da ração e o garrote, mais o coração cheio do
generoso conforto possível. Circulando no centro da violência mais cruel,
antecâmara de loucuras várias, transportaria ela na alma depois da guerra
civil, traumas diversos, ou um único, a acoitar todos os sofrimentos que
tivessem, durante a guerra, ludibriado a morte?
A vivandeira do Café Nero pede o seu café, senta-se a uma das
mesas e debica o biscoito que trouxe consigo. Esta mulher não é uma pobre, uma
miserável, a atrair a compaixão de gente mais sensível. Revela perfeita
autonomia de si, comportamento e expressão perfeitamente normal. Mas na mochila
e no saco da frente transporta talvez segredos, vestígios ocultos que só ela
pode decifrar, de qualquer trauma que em tempos, eventualmente a tivesse
atingido.
Café Nero, St.
Annes on the Sea, 12Out21012
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