domingo, 14 de outubro de 2012


NOVENTA E TRÊS

de

Victor Hugo

(Comentário)

 

NOVENTA E TRÊS. O ano horrível da Revolução Francesa.

Aconteceram neste ano as maiores atrocidades que o género humano cometeu, só comparável, embora com diferente fundamentação, aos actos da Inquisição.

Victor Hugo cujos pais viveram a guerra civil, faz-nos, em dois pequenos volumes do seu romance histórico o retrato do país devastado, e dos homens que a coberto dos respectivos ideais assumiam frequentemente comportamentos, que pensamos, poderem ser cometidos unicamente por feras sem alma nem sentimentos, e para quem a vida humana não é merecedora da menor consideração.

Descrevendo pormenorizadamente os lugares, oferece-nos nesse aspecto uma leitura por vezes fastidiosa, pela referência exaustiva desses lugares e dos personagens situados dubiamente entre o histórico e o lendário.

Penso que o faz, para mostrar o imenso confronto entre todas as facções de um povo de armas na mão, naquela charneira da História. História que extravasa da França, espalhando grandiosos ideais pela Europa e pelo mundo.

Daquela torrente de violência desmedida, em que os homens se aniquilaram aos milhares inexoravelmente, com a impiedade com que um rio de lava aniquila sobre o leito que rasga tudo o que nele existe, deveriam surgir por misteriosa dialéctica, os fundamentos da civilização moderna que alicerçou a dignidade do Homem. Como se a abstracção que é a revolução, tivesse uma consciência oculta, de que só a dignificação do homem em cada indivíduo, universalmente, justificaria um bastante perdão para os desmandos e crimes cometidos.

O perdão. Não o esquecimento. Só quem esquece repete. “Noventa e Três”, regista uma grande nódoa para que na História, não fique irremediavelmente esquecida.

Mas Victor Hugo não nos fala da crueldade sem limites sem ao mesmo tempo e sobreposta, nos mostrar uma janela de esperança. E fala do amor, da abnegação, de um supremo bem que apesar de tudo persiste e chega a tocar os corações mais endurecidos pela guerra. Defende que a maldade e a crueldade não são irreversíveis. Enaltece os supremos sacrifícios que o amor de uma mãe, conduz uma frágil mulher, impiedosamente fuzilada e salva pelo mendigo que nada tem a perder nem a ganhar com a guerra, que assume ser-lhe alheia.

Face aos actos de coragem extrema e assunção do risco da vida pelos ideais, coloca no mesmo patamar o camponês enfeudado que dá a vida pelo fidalgo que lhe matou o irmão e o conserva escravo do seu Senhor, do Rei, e de Deus que criou o mundo, a bravura em combate dos homens que defendem a República e os ideais que ela anuncia, e a coragem daquele que acima da própria vida coloca a honra da palavra dada.

Há páginas e capítulos inteiros que nos criam alguma aversão pela inumanidade, e outras que nos enternecem.

A caminho do desenlace, é extraordinário o diálogo sereno entre o condenado e o seu grande amigo, mestre e juiz, que o condena à morte. Diálogo que constitui uma metáfora da encruzilhada que se apresenta ao futuro da República nascente. Opõe o ponto de vista do mestre que advoga um sistema de justiça social inflexível, implacável, baseado na trilogia “Liberdade Igualdade Fraternidade, ao do seu pupilo que com escassas horas para viver, acrescenta a tudo isso um caminho espiritual para que se dignifique e engrandeça o homem culto, solidário e generoso. Este homem que tem encontro marcado com a morte declara serenamente sonhar o futuro. Não é o seu que o preocupa, mas sim o da humanidade.

Quanta elevação! A obra é divina quando supera o autor. O padre Cimourdain criou, educou e alimentou com ideias libertadoras o jovem Gauvain. Amando-o, condenou-o à guilhotina pela honra da palavra dada e em cumprimento da lei. Condenando-o reivindica o mesmo destino.

Gauvain reivindicou a morte por ter traído a lei que subscreveu ao libertar um velho cruel que perante a inocência ameaçada, num rebate de bondade salvou três crianças a horrível morte pelo fogo, perante quatro mil homens impotentes face à fornalha. Libertando-o manifestou ainda respeito pelos seus antepassados aos quais politicamente e opunha, numa afirmação que a sua inimiga não eram os homens mas sim a sua política.

Tal como fiz em “Frutos da Revolução”, transcrevo agora o diálogo final entre o pragmático e o utopista.

Utopia bela a que todo o homem bem formado anseia. Pensamentos utópicos a que não foi dada a oportunidade de espalhar semente.

A guilhotina (sempre o instrumento do mais forte) ceifou do corpo de Gauvain, a cabeça de longos cabelos castanhos onde germinava uma nova aurora que tornaria, porventura, mais brilhantes as luzes da Revolução Francesa.

Utopia que permanece actual, como se lê no diálogo que transcrevo.

 “ Dizia Gauvin:

- Grandes acontecimentos se estão delineando. O que a revolução faz neste momento é misterioso. … Por baixo de um andaime de crueldade, edifica-se um templo de civilização.

- Sim – respondeu Cimourdain. – Deste provisório sairá o definitivo. O definitivo, isto é, o direito e o dever paralelos, o imposto proporcional e progressivo, o serviço militar obrigatório, o nivelamento, nenhum desvio, e acima de todos e de tudo a linha recta da lei. A república do absoluto.

Prefiro-lhe, - disse Gauvain – a república do ideal … Ó mestre em tudo quanto acaba de dizer, onde coloca o desinteresse, o sacrifício, a abnegação, o enlace magnânimo das bem querenças, o amor? Pôr tudo em equilíbrio é bom; pôr tudo em harmonia é melhor.  …é essa a diferença entre um teorema e uma águia.

- Perdes-te nas nuvens.

- Perde-se no cálculo.

- Há sonho na harmonia.

- Há-o também na álgebra.

- Eu queria o homem feito por Euclides.

- E eu – disse Gauvain – queria-o feito por Homero.

… Poesia. Desconfia dos poetas.

- Sim, conheço a frase. Desconfia das aragens, desconfia dos raios, desconfia dos perfumes, desconfia das flores, desconfia das constelações.

- Nada disso dá de comer.

- Quem sabe? A ideia também é alimento. Pensar é comer.

- A república é dois e dois são quatro. Quando dou a cada um o que lhe toca…

- Falta dar-lhe o que não lhe toca. A imensa concessão recíproca que cada um deve a todos e todos a cada um, e que constitui toda a vida social.


Desafio-te a que entres nas aplicações.

- Pois bem. O senhor quer o serviço militar obrigatório. Contra quem? Contra outros homens. Eu não quero serviço militar. Quero a paz. Quer os miseráveis socorridos, eu quero a miséria suprimida. Quere o imposto proporcional. Eu não quero imposto nenhum. Quero a despreza comum reduzida à sua expressão mais simples e paga pelas sobras sociais. … Primeiro suprimamos parasitismos; o parasitismo do padre, o parasitismo do juiz, o parasitismo do soldado. Depois tirem partido das riquezas; lançam o estrume no esgoto, deitem-no no sulco do arado. As três quartas partes do solo são baldios, arroteiem a França, suprimam as pastagens inúteis; dividam as terras comunais. Tenha todo o homem uma terra, e toda a terra um homem. Centuplicarão assim o produto social. A França nesta ocasião, apenas dá aos seus naturais, quatro quilos de carne por ano; bem cultivada alimentaria trezentos milhões de homens, toda a Europa. Utilizem a natureza, essa imensa auxiliar desprezada. Façam trabalhar em seu proveito todas as correntes de ar, todas as quedas de água, todos os eflúvios magnéticos. O globo tem uma rede venosa subterrânea, há nessa rede uma circulação prodigiosa de água, de óleo e de fogo; piquem a veia do globo e façam jorrar essa água para as suas fontes, esse óleo para as suas lâmpadas e esse fogo para os seus lares. Reparem no movimento das vagas, no fluxo e refluxo das marés. Que vem a ser o oceano? Uma enorme força perdida. Como a terra é estúpida! Não aproveitar o oceano!

… E a mulher? Que destino lhe querem dar?

Cimourdain respondeu:

- O que ela tem. Ser a serva do homem.

- Sim, com uma condição.

- Qual vem a ser?

- Que o homem seja servo da mulher.

- Pois pensas isso? O homem servo? Nunca. O homem é senhor. Só admito uma realeza, a do lar. O homem em sua casa é rei.

- Sim, com a condição de a mulher seja nele a rainha.

- Igualdade! Se os dois entes são diversos.

- Disse igualdade, não disse identidade.


Gauvain:

- A minha ideia é esta: Sempre para a frente. Se Deus quisesse que o homem recuasse tinha-lhe posto um olho na parte posterior da cabeça. Olhemos sempre +para o lado da aurora, do desabrochar, do nascimento. O que cai anima o que sobe. O estalar da velha árvore é uma chamada à árvore nova. Cada século fará a sua obra, hoje cívica amanhã humana. Hoje a questão do direito, amanhã a questão do salário. O homem não vive para deixar de ser pago Deus, dando a vida contrai uma dívida o direito é o salário inato; o salário é o direito adquirido.

Cimourdain murmurou: - Andas com rapidez.

- É talvez porque vou um pouco apressado – disse Gouvain sorrindo – e continuou. Ó mestre, eis a diferença entre as nossas duas utopias;

. O senhor quer a caserna obrigatória, eu quero a escola. Fantasia o homem soldado, eu fantasio o homem cidadão. Deseja-o terrível, eu quero-o pensativo. Funda uma república de gládios. Eu fundaria uma república de espíritos.


Absolves o momento presente?

-Absolvo, porque é uma tempestade. Uma tempestade sabe o que faz. Por cada carvalho fulminado, quantas florestas saneadas! A civilização tinha uma peste, este vendaval livra-a dela. Não faz talvez boa escolha, mas poderia fazer o contrário?


Sejamos a sociedade humana. Maior que a natureza. Sim, se nada acrescentam à natureza, para que sair dela? Então contentem-se com o trabalho da formiga e com o mel da abelha. Fiquem o animal trabalhador, em vez de serem a inteligência rainha. Se acrescentarem alguma coisa à natureza serão certamente maiores do que ela. Acrescentar é aumentar; aumentar é engrandecer. A sociedade é a natureza sublimada. Quero tudo quanto falta à colmeia, tudo quanto falta aos formigueiros, os monumentos, as artes, a poesia, os heróis, os génios. Carregar fardos eternos não é a lei do homem. Não, não, não, basta de párias, basta de escravos, basta de forçados, basta de condenados! Quero que um dos atributos do homem seja um símbolo de civilização e um modelo do progresso; quero a liberdade perante o espírito, a igualdade perante o coração, a fraternidade perante a alma. Não, basta de jugo! O homem foi feito não para arrastar cadeias mas para abrir asas. Não quero o homem reptil. Quero a transfiguração da larva em lepidóptero; quero que o verme se transforme numa flor animada e voe. Quero…


- Em que pensas? – perguntou o mestre.

- No futuro. – respondeu.”

Momentos depois a guilhotina abortou o sonho de Gauvain. O mestre, seu amigo e Juiz do tribunal que o condenou, partiu com ele.

 

St. Annes On the Sea, 07out2012

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