NOVENTA E TRÊS
de
Victor Hugo
(Comentário)
NOVENTA E TRÊS. O ano horrível da Revolução Francesa.
Aconteceram neste ano as maiores atrocidades que o género
humano cometeu, só comparável, embora com diferente fundamentação, aos actos da
Inquisição.
Victor Hugo cujos pais viveram a guerra civil, faz-nos, em
dois pequenos volumes do seu romance histórico o retrato do país devastado, e
dos homens que a coberto dos respectivos ideais assumiam frequentemente comportamentos,
que pensamos, poderem ser cometidos unicamente por feras sem alma nem
sentimentos, e para quem a vida humana não é merecedora da menor consideração.
Descrevendo pormenorizadamente os lugares, oferece-nos nesse
aspecto uma leitura por vezes fastidiosa, pela referência exaustiva desses lugares
e dos personagens situados dubiamente entre o histórico e o lendário.
Penso que o faz, para mostrar o imenso confronto entre todas
as facções de um povo de armas na mão, naquela charneira da História. História
que extravasa da França, espalhando grandiosos ideais pela Europa e pelo mundo.
Daquela torrente de violência desmedida, em que os homens se
aniquilaram aos milhares inexoravelmente, com a impiedade com que um rio de
lava aniquila sobre o leito que rasga tudo o que nele existe, deveriam surgir
por misteriosa dialéctica, os fundamentos da civilização moderna que alicerçou
a dignidade do Homem. Como se a abstracção que é a revolução, tivesse uma
consciência oculta, de que só a dignificação do homem em cada indivíduo,
universalmente, justificaria um bastante perdão para os desmandos e crimes
cometidos.
O perdão. Não o esquecimento. Só quem esquece repete. “Noventa e Três”, regista uma grande
nódoa para que na História, não fique irremediavelmente esquecida.
Mas Victor Hugo não nos fala da crueldade sem limites sem ao
mesmo tempo e sobreposta, nos mostrar uma janela de esperança. E fala do amor,
da abnegação, de um supremo bem que apesar de tudo persiste e chega a tocar os
corações mais endurecidos pela guerra. Defende que a maldade e a crueldade não
são irreversíveis. Enaltece os supremos sacrifícios que o amor de uma mãe,
conduz uma frágil mulher, impiedosamente fuzilada e salva pelo mendigo que nada
tem a perder nem a ganhar com a guerra, que assume ser-lhe alheia.
Face aos actos de coragem extrema e assunção do risco da vida
pelos ideais, coloca no mesmo patamar o camponês enfeudado que dá a vida pelo
fidalgo que lhe matou o irmão e o conserva escravo do seu Senhor, do Rei, e de
Deus que criou o mundo, a bravura em combate dos homens que defendem a
República e os ideais que ela anuncia, e a coragem daquele que acima da própria
vida coloca a honra da palavra dada.
Há páginas e capítulos inteiros que nos criam alguma aversão
pela inumanidade, e outras que nos enternecem.
A caminho do desenlace, é extraordinário o diálogo sereno
entre o condenado e o seu grande amigo, mestre e juiz, que o condena à morte.
Diálogo que constitui uma metáfora da encruzilhada que se apresenta ao futuro
da República nascente. Opõe o ponto de vista do mestre que advoga um sistema de
justiça social inflexível, implacável, baseado na trilogia “Liberdade Igualdade
Fraternidade, ao do seu pupilo que com escassas horas para viver, acrescenta a
tudo isso um caminho espiritual para que se dignifique e engrandeça o homem
culto, solidário e generoso. Este homem que tem encontro marcado com a morte
declara serenamente sonhar o futuro. Não é o seu que o preocupa, mas sim o da
humanidade.
Quanta elevação! A obra é divina quando supera o autor. O padre
Cimourdain criou, educou e alimentou com ideias libertadoras o jovem Gauvain.
Amando-o, condenou-o à guilhotina pela honra da palavra dada e em cumprimento
da lei. Condenando-o reivindica o mesmo destino.
Gauvain reivindicou a morte por ter traído a lei que
subscreveu ao libertar um velho cruel que perante a inocência ameaçada, num
rebate de bondade salvou três crianças a horrível morte pelo fogo, perante
quatro mil homens impotentes face à fornalha. Libertando-o manifestou ainda
respeito pelos seus antepassados aos quais politicamente e opunha, numa
afirmação que a sua inimiga não eram os homens mas sim a sua política.
Tal como fiz em “Frutos da Revolução”, transcrevo agora o
diálogo final entre o pragmático e o utopista.
Utopia bela a que todo o homem bem formado anseia.
Pensamentos utópicos a que não foi dada a oportunidade de espalhar semente.
A guilhotina (sempre o instrumento do mais forte) ceifou do corpo
de Gauvain, a cabeça de longos cabelos castanhos onde germinava uma nova aurora
que tornaria, porventura, mais brilhantes as luzes da Revolução Francesa.
Utopia que permanece actual, como se lê no diálogo que
transcrevo.
“ Dizia Gauvin:
- Grandes
acontecimentos se estão delineando. O que a revolução faz neste momento é
misterioso. … Por baixo de um andaime de crueldade, edifica-se um templo de
civilização.
- Sim – respondeu Cimourdain. – Deste provisório sairá o definitivo. O
definitivo, isto é, o direito e o dever paralelos, o imposto proporcional e
progressivo, o serviço militar obrigatório, o nivelamento, nenhum desvio, e
acima de todos e de tudo a linha recta da lei. A república do absoluto.
Prefiro-lhe, - disse Gauvain – a república do ideal … Ó mestre em tudo quanto acaba de dizer, onde
coloca o desinteresse, o sacrifício, a abnegação, o enlace magnânimo das bem
querenças, o amor? Pôr tudo em equilíbrio é bom; pôr tudo em harmonia é melhor.
…é essa a diferença entre um teorema e
uma águia.
- Perdes-te nas nuvens.
- Perde-se no cálculo.
- Há sonho na harmonia.
- Há-o também na álgebra.
- Eu queria o homem
feito por Euclides.
- E eu – disse Gauvain – queria-o feito por Homero.
… Poesia. Desconfia dos
poetas.
- Sim, conheço a frase.
Desconfia das aragens, desconfia dos raios, desconfia dos perfumes, desconfia
das flores, desconfia das constelações.
- Nada disso dá de
comer.
- Quem sabe? A ideia
também é alimento. Pensar é comer.
- A república é dois e
dois são quatro. Quando dou a cada um o que lhe toca…
- Falta dar-lhe o que
não lhe toca. A imensa concessão recíproca que cada um deve a todos e todos a
cada um, e que constitui toda a vida social.
…
Desafio-te a que entres
nas aplicações.
- Pois bem. O senhor
quer o serviço militar obrigatório. Contra quem? Contra outros homens. Eu não
quero serviço militar. Quero a paz. Quer os miseráveis socorridos, eu quero a
miséria suprimida. Quere o imposto proporcional. Eu não quero imposto nenhum.
Quero a despreza comum reduzida à sua expressão mais simples e paga pelas
sobras sociais. … Primeiro suprimamos parasitismos; o parasitismo do padre, o
parasitismo do juiz, o parasitismo do soldado. Depois tirem partido das
riquezas; lançam o estrume no esgoto, deitem-no no sulco do arado. As três
quartas partes do solo são baldios, arroteiem a França, suprimam as pastagens
inúteis; dividam as terras comunais. Tenha todo o homem uma terra, e toda a
terra um homem. Centuplicarão assim o produto social. A França nesta ocasião,
apenas dá aos seus naturais, quatro quilos de carne por ano; bem cultivada
alimentaria trezentos milhões de homens, toda a Europa. Utilizem a natureza,
essa imensa auxiliar desprezada. Façam trabalhar em seu proveito todas as
correntes de ar, todas as quedas de água, todos os eflúvios magnéticos. O globo
tem uma rede venosa subterrânea, há nessa rede uma circulação prodigiosa de água,
de óleo e de fogo; piquem a veia do globo e façam jorrar essa água para as suas
fontes, esse óleo para as suas lâmpadas e esse fogo para os seus lares. Reparem
no movimento das vagas, no fluxo e refluxo das marés. Que vem a ser o oceano?
Uma enorme força perdida. Como a terra é estúpida! Não aproveitar o oceano!
… E a mulher? Que
destino lhe querem dar?
Cimourdain respondeu:
- O que ela tem. Ser a
serva do homem.
- Sim, com uma
condição.
- Qual vem a ser?
- Que o homem seja
servo da mulher.
- Pois pensas isso? O
homem servo? Nunca. O homem é senhor. Só admito uma realeza, a do lar. O homem
em sua casa é rei.
- Sim, com a condição
de a mulher seja nele a rainha.
- Igualdade! Se os dois
entes são diversos.
- Disse igualdade, não
disse identidade.
…
Gauvain:
- A minha ideia é esta:
Sempre para a frente. Se Deus quisesse que o homem recuasse tinha-lhe posto um
olho na parte posterior da cabeça. Olhemos sempre +para o lado da aurora, do
desabrochar, do nascimento. O que cai anima o que sobe. O estalar da velha
árvore é uma chamada à árvore nova. Cada século fará a sua obra, hoje cívica
amanhã humana. Hoje a questão do direito, amanhã a questão do salário. O homem
não vive para deixar de ser pago Deus, dando a vida contrai uma dívida o
direito é o salário inato; o salário é o direito adquirido.
Cimourdain murmurou: -
Andas com rapidez.
- É talvez porque vou
um pouco apressado – disse
Gouvain sorrindo – e continuou. Ó mestre,
eis a diferença entre as nossas duas utopias;
. O senhor quer a
caserna obrigatória, eu quero a escola. Fantasia o homem soldado, eu fantasio o
homem cidadão. Deseja-o terrível, eu quero-o pensativo. Funda uma república de
gládios. Eu fundaria uma república de espíritos.
…
Absolves o momento
presente?
-Absolvo, porque é uma
tempestade. Uma tempestade sabe o que faz. Por cada carvalho fulminado, quantas
florestas saneadas! A civilização tinha uma peste, este vendaval livra-a dela.
Não faz talvez boa escolha, mas poderia fazer o contrário?
…
Sejamos a sociedade
humana. Maior que a natureza. Sim, se nada acrescentam à natureza, para que
sair dela? Então contentem-se com o trabalho da formiga e com o mel da abelha.
Fiquem o animal trabalhador, em vez de serem a inteligência rainha. Se
acrescentarem alguma coisa à natureza serão certamente maiores do que ela.
Acrescentar é aumentar; aumentar é engrandecer. A sociedade é a natureza
sublimada. Quero tudo quanto falta à colmeia, tudo quanto falta aos
formigueiros, os monumentos, as artes, a poesia, os heróis, os génios. Carregar
fardos eternos não é a lei do homem. Não, não, não, basta de párias, basta de
escravos, basta de forçados, basta de condenados! Quero que um dos atributos do
homem seja um símbolo de civilização e um modelo do progresso; quero a
liberdade perante o espírito, a igualdade perante o coração, a fraternidade
perante a alma. Não, basta de jugo! O homem foi feito não para arrastar cadeias
mas para abrir asas. Não quero o homem reptil. Quero a transfiguração da larva
em lepidóptero; quero que o verme se transforme numa flor animada e voe. Quero…
…
- Em que pensas? –
perguntou o mestre.
- No futuro. – respondeu.”
Momentos depois a guilhotina abortou o sonho de Gauvain. O
mestre, seu amigo e Juiz do tribunal que o condenou, partiu com ele.
St. Annes On
the Sea, 07out2012
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