sexta-feira, 26 de outubro de 2012

ESPINOSA


ESPINOSA…



Espinosa expõe, decididamente, uma ideia sedutora.
Tem havido e continua a haver filósofos e outras pessoas, que não figurando no catálogo de produtores de pensamentos originais sentem necessidade de especular, fazendo disso reflexão acercade, entre outros temas, a ideia de Deus e a fé que a suporta.
Fazem-no, e aí me incluo, não para encontrar um “pai desconhecido”, mas pela necessidade de um exercício intelectual que dê coerência ao pensamento, e acrescente hipóteses lógicas, por oposição ao Dogma.
É que a fé, apresenta-se-me como um beco sem saída, um argumento que visa essencialmente a auto contenção e a aceitação de que tudo o que esteja para lá da razão não pode nem deve ser procurado. Como se a razão fosse um processo estático e acabado.
Apoiados na fé dos crentes, podem os sacerdotes dizer: “O pai não está em casa. Porta-te bem, que ele há-de tudo saber. Até lá, faz o que eu te digo e como te digo”. – É a velha história: “ Come a sopa, senão vem aí o papão”.
No meu ponto de vista, a ideia de Deus, magnífica invenção do homem que se interroga, é a eterna (sempre provisória) resposta para aquilo que a razão e a ciência ainda não alcançaram. Tão bela e poderosa, que não resistem a pô-la ao seu servico, os suseranos e outros poderosos da Terra, presente na quase totalidade dos argumentos de domínio de povos inteiros “Rex Deo Gratia”. O certo é que o conhecimento dos homens tem alargado os seus horizontes em detrimento do “território” de Deus.
Belíssima criação poética, desde logo contaminada no que ao judaico-cristianismo diz respeito, pela afirmação basilar de que Ele nos fez “à Sua imagem e semelhança”. Esta afirmação que remete obrigatoriamente para uma representação antropomórfica de Deus, não só pela forma mas também pela mente, coloca-o como um pai invisível a circular pela casa toda, ocultando-se inexplicavelmente ao olhar dos filhos, causando-lhes a dor da saudade. A constatação desta ausência origina uma espécie de angústia nos crentes, receosos de serem esquecidos e excluídos do céu.
Esta concepção figurativa e ao mesmo tempo invisível, constitui uma enorme falácia. Contudo não tem nada de original, tal como a una “Santíssima Trindade”, inspiradas que foram na civilização egípcia que significativamente contribuiu para a educação de Moisés. Entre os egípcios o faraó era o Deus encarnado. Tinha forma humana. Era um homem à semelhança de todos os outros. Tinha as mesmas necessidades, os mesmos gostos, prazeres, sofrimentos. Nada enquanto homem, o diferenciava dos outros homens. Mas a sua essência era a de Rhé, esse sim, inatingível, sendo a sua relação com a vida de sentido único, de cima para baixo, fonte de toda a vida sobre a terra.
Da terra tudo nasceu; o Sol, tudo criou. O sol, tudo queimou, a terra tudo comeu”.(1)
Ora, sendo Deus alegadamente o imperador universal, que designou pela Sua graça o poder dos reis e dos imperadores terrenos, por estar ausente da capacidade sensorial dos homens, precisou, (Deus tinha necessidades?), para a realização dos seus desígnios, de intermediários que organizando-se hierarquicamente, materializaram a administração do reino de Deus na Terra.
Tendo invertido a lógica dos egípcios, declararam inconsistentemente, que os homens foram criados à semelhança de Deus. Não deveríamos ter ficado invisíveis, devido ~a  alegada imagem e semelhança?
Lembro que ao longo da história, a Igreja foi reconhecendo sucessivas demonstrações científicas como fenómenos naturais, subtraídos à anterior explicação de milagres divinos. (Nicolau Copérnico queimado vivo, por ter demonstrado o sistema heliocêntrico. Galileu Galilei escapou à pena capital, porque se retratou quanto à natureza planetária da Lua -...”e no entanto ela move-se”. Giordano Bruno, um dos maiores filósofos do Renascimento, por ter teorizado sobre o mundo e sobre Deus foi preso pela Inquisição e queimado vivo em Roma no ano de 1600). Foi sempre prática da Igreja submeter as descobertas científicas à aprovação dos defensores da fé, ignorantes nas matérias em juízo. O conhecimento generalizado, sendo libertador, punha em causa os dogmas e consequentemente o domínio da humanidade pela igreja.
O Vaticano tem vindo muito lentamente, a reconhecer sucessivas demonstrações científicas, e está, segundo o recentemente falecido cardeal Martinni, com um atraso de cerca de duzentos anos, neste início do século XXI. Para sobreviver ao desbravar da ciência e de determinadas correntes filosóficas, e da cultura em geral, a auto proclamada única representante do criador do universo, tem adaptado o seu discurso à progressiva libertação da sociedade humana, e assumindo com tosca justificação, o obscurantismo medieval como “próprio daqueles tempos”. Obscurantismo que se arrastou nos tempos com extraordinária resistência.
Li recentemente excertos do pensamento de Espinosa, judeu holandês de origem portuguesado séc. XVII, alvo de xarém (excomungado) pelos seus, porque a coerência do seu pensamento acerca do divino, humanista por libertador do jugo religioso judaico-cristão, o impedia de aceitar a inconsistência, contradições e muito más explicações das escrituras sagradas.
Entretanto já eu tinha percorrido um íntimo caminho de reflexão acerca do Universo por um lado, e da necessidade de Deus por outro.(2)
Fui educado por um ateu, com uma “verdade” de igual valor com que o foram as crianças educadas na fé em Deus. Se nos conformarmos com esses modelos, se os considerarmos suficiente alimento para a inteligência, ficam-nos irremediavelmente na matriz sobre a qual construiremos a nossa humanidade.
Na adolescência, por circunstâncias várias, rompi o invólucro que continha a minha formatação ateia e naveguei num arquipélago de outras idiossincrasias. O meio social em que me vi envolvido, ofereceu-me uma relativa sedução do humanismo cristão. Embora com sincera disponibilidade para aceitar a dita fé, o “Divino Espírito Santo” entendeu que não deveria descer sobre a minha cabeça. Deve ter pensado que se eu crescesse em liberdade de pensamento, seria mais sincera, por desinteressada, a minha busca da harmonia, da bondade e da solidariedade, no respeito pelos outros sem a barreira de culturas e credos. Os meus actos seriam mais dignos pela abnegação, pois não os faria como moeda de troca pela eternidade, do que se a minha actuação na vida, fosse regida por dez mandamentos com medo do castigo divino.
Assim, não encontrando dignidade ou moral acrescidas na religião, e considerando insatisfatórios por insuficientes os autos de fé, declarei a um dos meus melhores amigos, cristão absolutamente convicto que me tinha introduzido no seu mundo, que me desvinculava inteiramente da religião, pois só por hipocrisia poderia presenciar e partilhar os seus rituais, ou aceitar que as religiões dominassem a humanidade. Fiquei mais seu amigo, quando me respondeu que a sua amizade não sofreria nada com a mudança.
Não voltei a ser o ateu radical, como na fase em que não pensava pela minha cabeça.
Em 1990, no texto “Adoradores do Sol e do Mar” (2) escrevi que as artes (plásticas) seriam um avatar resultante da intervenção do espírito sobre a matéria inerte.
O mundo está cheio de criações humanas, e como criador, disse a mim próprio que a haver Deus, esse, seria o Homem; só que não tem disso a consciência.
Para melhor compreender a matriz ideológica do meu primeiro educador, levei anos até encontrar um exemplar de “Sermões da Montanha” de Tomás da Fonseca, a quem o meu pai se referia como o seu “pai de pensamento”. Encontrei uma 2ª edição de 1959, cinquenta anos depois da primeira. Do diálogo entre o autor com os camponeses que acorriam aos seus serões, li, nas páginas 239 e 24.
… “A: - Porque, meus amigos dentro de cada um de nós há um Deus oculto, um Deus profundo, magnânimo e divino. Em cada um de nós palpita o sonha, vela e pensa um Deus, porque se não fôssemos nós…
João Cortez: - Já compreendo… Deus somos nós.
Joaquim Serrador – É isso. Deus e o homem…
A – Porque se não fôssemos nós, eu, tu, o Manuel, a Tia Joaquina, o Pedro, se não fosse o padre que diz missa, o missionário que prega, o devoto que reza, o doente que crê e tem visões, fiquem sabendo, que não haveria Deus nem anjos. Não haveria bom nem mau. Não haveria desdita nem ventura. Céu e o inferno, o bem e o mal, tudo isso se cria e amplifica e toma corpo na nossa inteligência criadora. Os deuses como os sonhos, têm origem em nós próprios. Todas as ambições, todos os conflitos, o amor, o ódio, a soberba, a cólera, a vingança e o medo, tudo tem origem no coração humano, ou antes na inteligência visto que toda a nossa vida é cerebral.”
Na verdade só na mente humana se encontra o conceito de Deus. Fora dela não se conhece qualquer manifestação sua que corresponda ao que tem sido pregado.
Acredito que Tomás da Fonseca leu Espinosa, embora não tenha no livro encontrado essa referência entre centenas de outros pensadores e personagens históricos em que apoia muitas das suas declarações.
A fé, como escrevi no texto “Necessidade de Deus?” (13 Jan 2010), não surge do nada por vontade do tal Espírito Santo. É indesmentível que absorvida na sopa cultural na família ou na comunidade, razão porque cada cultura tem o seu próprio Deus universal. E as imensas culturas de povos por esse mundo fora que não têm a menor ideia de um ser sobrenatural, criador divino? Por que motivo Deus os teria mantido fora do seu seio? Que Deus os teria excluído do seu clã?
Diz Espinosa:
“ Deus não existe da maneira como a religião o declara, mas tão-somente, como um “princípio” impessoal e espiritual como uma substância que constitui a realidade do Universo. (O panteísmo acredita que tudo é Deus). A existir Deus, Ele revela-se por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pela sorte e pelos actos dos homens”.
A partir deste entendimento acerca da existência, depreende-se que Deus é, por um lado um conceito espiritual, portanto produto da mente, com o que isso tem a ver com a sua alegada vontade, como o caracterizam as religiões de raiz judaica; por outro, identifica-se com as substâncias que constituem o Universo como o conhecemos.
Tomás da Fonseca está em consonância com este pensamento quando diz que o homem é Deus. Amplificando, direi que o homem é tão Deus como todos os outros animais, como qualquer forma de vida, matéria inanimada, por aí estarem presentes, todos os elementos fundamentais do Universo.
Nesta tese, seria mais fácil admitir a existência de Deus, porque Isso, e não Esse, não seria nem mais nem menos do que a totalidade da existência.
Por que motivo tem o Todo, necessidade de ser louvado e temido por uma parte de si proprio?
Tão descabido seria temer-sea si mesmo, como seria auto louvar-se. Ter consciência, bastar-se-ia.
Quem sabe, se o homem ganharia um outro sentido de responsabilidade, excluídas as doutrinas que levam os crentes à subserviência das respectivas hierarquias religiosas convencidos de que temendo, louvando, e solicitando benesses a Deus, terão assegurada uma incerta “vida eterna”. Claro que esta prática não dispensa os dízimos para o exército de sacerdotes e seus dirigentes.

Não me surpreenderia que, com a conhecida capacidade de adaptação da Igreja às revelações do conhecimento e da cultura, ela aceite um dia ainda muito remoto, que afinal Deus e toda a existência são uma e a mesma coisa, e que nada existe na determinação de uma vontade ou desígnio divino, dirigido especificamente aos Seres Humanos.
Só que esse reconhecimento alteraria irremediavelmente a natureza das igrejas, com consequências definitivas para a hierarquia, para o seu tesouro e o poder com que domina os crentes.


(1)(O Aproveitamento de Deus. - 13 Jan 2010)
(2 ) (Publicado na Revista Cultural de Algezur - )

St Annes on The Sea 16 Out2012
Fernando Fonseca

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