UM DOCE CHEIRO A VERDE -MAR
Tinha arrefecido bastante, antes
ainda que o sol mergulhasse lá em baixo no mar envolto em névoa, como acontece quando o Jordano mergulha no latão o ferro incandescente moldado na bigorna.
A noite apanhou-me a meio do
brejo, silenciosa, como se ralos e mochos tivessem adivinhado a invernia.
Estiquei o passo procurando não sair do carreiro, na escuridão entrecortada por
aquele pedaço de crescente, que espreitava fugazmente entre os retalhos das
pesadas nuvens. Nem as rãs, que cantam antes da chuva, se faziam ouvir nos
charcos que salpicavam o alagadiço dum lado e outro da vereda.
Gotinhas frias, picavam-me o
pescoço aquecido pelo esforço da caminhada e as pernas abaixo dos calções de
cotim coçado.
O monte ainda era longe, e em menos
de meia hora não me punha lá. A não ser…Comecei a correr, tanto mais que o
vento tinha descido das alturas a açoitar as urzes os tojos e os pastos do
brejo, carregando forte a chuva que me repassava a camisa de fioco, gotejava no
rosto a escorrer-se pelo pescoço e costas, explorando o corpo ensopado.
Ao chegar à gurita no alto do
cerrinho, vi lá em baixo na varja as manchas escuras do monte e da arramada, como dois bichos adormecidos ao lado da ceara de centeio.
Chegando ao rossio, hesitei junto
ao forno para, decidido, disparar feito num pinto na direcção da arramada.
O vaqueiro já tinha cévado devido
ao temporal e acabava de passar a laçada pelos cornos da última vaca.
Olhou-me espantado. Depois
presenteou-me com um sorriso desfalcado, alumiado aos laivos pelas labaredas
que devoravam apetitosas, estaladiços cepos de sobro no canto preto da
arramada.
- Oh, Ti Manel Domingos. Estou
todo molhado.
Sem pressas nem demora, deu-me a
manta de lã comprada na última feira da Barreira com estima no gesto. Pendurou-me
os calções e a camisa num varal perto do fogo, as pontas apoiadas em dois
mochos, enquanto enrolado na manta, mergulhei na palha de um fardo desmanchado.
Puxei os joelhos para os queixos, meti as mãos entre as pernas, a cabeça
tapada, o bafo a aquecer-me o casulo.
Os estremeções tornaram-se mais
raros. Só ouvia os bagos da chuva no telhado, o vento lá fora e as cornadas das
vacas de encontro às manjedouras.
Nisto, um cheirinho a erva
cortada estrapassou a palha e a manta. Cantando, o Ti Manel Domingos homem
solitário, cortava o ferrejo para o gado na foice quebrada presa ao esteio
polido e envernizado pelo uso. Cantava ao ritmo do sopro da foice traçando o
centeio verde.
Quando aqueci lembrei-me de quando, num meio dia soalheiro da
primavera passada, mergulhei com a filha do moiral
nas ondas do centeio crescido, fazendo gaitas com os entrenós, chupando o suco
adocicado dos caules mastigados, esfregando os nossos corpos nus no despertar
de gozos desmedidos, mordiscando e rindo em surdina, num leito húmido de
frescura, perdidos e achados na verdura daquele mar salpicado de papoilas, longe
da estrada, perto do paraíso.
Fernando Fonseca 1985
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