sábado, 1 de dezembro de 2012

UM DOCE CHEIRO A VERDE MAR


UM DOCE CHEIRO A VERDE -MAR





Tinha arrefecido bastante, antes ainda que o sol mergulhasse lá em baixo no mar envolto em névoa, como acontece quando o Jordano mergulha no latão o ferro incandescente moldado na bigorna.

A noite apanhou-me a meio do brejo, silenciosa, como se ralos e mochos tivessem adivinhado a invernia. Estiquei o passo procurando não sair do carreiro, na escuridão entrecortada por aquele pedaço de crescente, que espreitava fugazmente entre os retalhos das pesadas nuvens. Nem as rãs, que cantam antes da chuva, se faziam ouvir nos charcos que salpicavam o alagadiço dum lado e outro da vereda.

Gotinhas frias, picavam-me o pescoço aquecido pelo esforço da caminhada e as pernas abaixo dos calções de cotim coçado.

O monte ainda era longe, e em menos de meia hora não me punha lá. A não ser…Comecei a correr, tanto mais que o vento tinha descido das alturas a açoitar as urzes os tojos e os pastos do brejo, carregando forte a chuva que me repassava a camisa de fioco, gotejava no rosto a escorrer-se pelo pescoço e costas, explorando o corpo ensopado.

Ao chegar à gurita no alto do cerrinho, vi lá em baixo na varja as manchas escuras do monte e da arramada, como dois bichos adormecidos ao lado da ceara de centeio.

Chegando ao rossio, hesitei junto ao forno para, decidido, disparar feito num pinto na direcção da arramada.

O vaqueiro já tinha cévado devido ao temporal e acabava de passar a laçada pelos cornos da última vaca.

Olhou-me espantado. Depois presenteou-me com um sorriso desfalcado, alumiado aos laivos pelas labaredas que devoravam apetitosas, estaladiços cepos de sobro no canto preto da arramada.

- Oh, Ti Manel Domingos. Estou todo molhado.

Sem pressas nem demora, deu-me a manta de lã comprada na última feira da Barreira com estima no gesto. Pendurou-me os calções e a camisa num varal perto do fogo, as pontas apoiadas em dois mochos, enquanto enrolado na manta, mergulhei na palha de um fardo desmanchado. Puxei os joelhos para os queixos, meti as mãos entre as pernas, a cabeça tapada, o bafo a aquecer-me o casulo.

Os estremeções tornaram-se mais raros. Só ouvia os bagos da chuva no telhado, o vento lá fora e as cornadas das vacas de encontro às manjedouras.

Nisto, um cheirinho a erva cortada estrapassou a palha e a manta. Cantando, o Ti Manel Domingos homem solitário, cortava o ferrejo para o gado na foice quebrada presa ao esteio polido e envernizado pelo uso. Cantava ao ritmo do sopro da foice traçando o centeio verde.

Quando aqueci lembrei-me de quando, num meio dia soalheiro da primavera passada, mergulhei com a filha do moiral nas ondas do centeio crescido, fazendo gaitas com os entrenós, chupando o suco adocicado dos caules mastigados, esfregando os nossos corpos nus no despertar de gozos desmedidos, mordiscando e rindo em surdina, num leito húmido de frescura, perdidos e achados na verdura daquele mar salpicado de papoilas, longe da estrada, perto do paraíso.


Fernando Fonseca 1985

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