quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

CARNAVAL DE BISSAU - 1980


CARNAVAL DE BISSAU
1980


Já na véspera o alarido fora enorme.
A multidão agitada, gritando, cantando e dançando, uns para cima outros para baixo, enchia a Av. Amílcar Cabral.
Começou pelo meio da tarde quando o calor do sol amainou e as sombras das casas começaram a alongar-se pelo asfalto galgando o passeio do lado oposto. Só ao pôr do sol é que saí, passada a moleza da sesta. Levei a máquina fotográfica e ao dobrar para a avenida, perfilou-se na minha frente, um rinoceronte, graduado com cinco estrelas de general, corpo deformado, farda branca enchida com almofadas de pano.
Claro, era uma foto “da ordem”. Foi a primeira. A primeira de trinta e seis que se prolongaram pela noite, durante os ensaios para a grande marcha, para o desfile e o concurso.
Vacas brutas, rinos, elefantes cabeçudos, morcegos, etc. tal era a profusão de máscaras que subiam e desciam no meio de bajudas embranquecidas de pó de arroz. (um preto, quando quer fazer figura de palhaço pinta-se de branco) disseram-me.
O maior alarido era o dos brasileiros que andavam a tentar um Carnaval à brasileira. Fez-me lembrar o cozido; enfim, não toava!
As pessoas participavam dançando, cantando, rindo e metendo medos. Isso foi na véspera.
No dia dezanove, foi a recomendação:
- Olha. Tens que fotografar o dragão, o Cárter o Muzorewa e o Vorster.
Equipei-me com duas máquinas, a minha e a da Jaal, pois fui encarregado de fazer a cobertura daquela grande manifestação cultural QUE É o Carnaval de Bissau, afinal a única grande festa popular comum a toda a gente, inclusive aos muçulmanos, que apesar de considerarem o Carnaval uma festa de cristãos, não se esquivam ao espectáculo e muito menos negam um pé de dança nos bailes da folia.
Assim, saí na hora oficial da abertura. Os miúdos pela mão, encontramos o Dragão a sair do recinto onde foi construído fora do olhar dos “espiões”. Monstro verde, articulado, olhos vermelhos luminosos, garras em riste. (houve um primeiro que deitava fogo pela boca, mas foi destruído pela chuva do princípio do mês.
O cortejo dirigiu-se para a marginal onde outros grupos mais ou menos folclóricos se exibiam com as suas cores, cantos, danças, guizos, e muitos outros adornos com objectos surpreendentes.
Entre eles, o Ballet Okinca Pampa – animador cultural sem direito a prémio no concurso, um grupo de jovens balantas enlameados e cobertos de adornos de folha de palma entrançada dançava, junto do pedestal de uma estátua apeada, dando lugar ao renascimento vigoroso de uma cultura oprimida século a fio.
Enquanto estes grupos tomavam o seu lugar eis que chegou com grande algazarra o grupo do “Desenvolvimento Rural”. Sensação, curiosidade, emoção e medo. Traziam consigo vivos, um crocodilo e duas gibóias. Punham-nos no chão e a malta fugia dando espaço aos bichos inofensivos, de tanto espantados.
Pelo meio disto, um grupo de cineastas francófonos recolhia imagem e som.
Diriji-me para a avenida novamente. Aí, uns dez grupos tinham já tomado posições e preparavam-se para iniciar o desfile. Tinha passado cerca de uma hora. A avenida Amílcar Cabral estava cheia dum lado e doutro. Mascarados brincavam com os espectadores ou corriam a juntar-se aos grupos que se concentravam no Pindjiguiti.
O primeiro grupo, piroso, o único piroso, iniciou a sua marcha. Meninos e meninas, vestidos de azul muito alinhados a querer parecer marjoretes, seguidos de um Sandokan mais a sua Mariana. Depois, dois noivos, atrás desta uma “odalasca” despida com um tecido preto transparente, bunda rolando.
Felizmente bem situado o cartaz; CARNAVAL 80.
Só atrás do cartaz é que vinha a telúrica cultura popular, a autenticidade da gente da Guiné, pretos, brancos, mestiços, intérpretes de uma mesma acção. Procurei captar estas imagens únicas e irrepetíveis, ora baixando a máquina ao nível do chão, ou subindo as acácias da avenida para obter as panorâmicas possíveis.
Cada vinte metros mais para cima, mais gente ladeava o percurso. Na entrada da Praça dos Heróis Nacionais, no triângulo de acesso à rotunda as pessoas amontoavam-se, europeus quase na totalidade de máquinas em punho.
Fascinado mais pela quantidade de espectadores que pelo desfile, capturei essas imagens enquanto segui, rápido até ao estrado em frente do Palácio Velho onde esperava, importante, o júri. Um grupo cantava, enquanto não chegava o desfile.
Chegou. Ou melhor, foi chegando. Aplausos. Comentários. O apresentador começou a aquecer a garganta; a garganta e o ânimo.
O primeiro grupo apresentou-se e o júri votou:
 - Tantos pontos pelo grupo! Tantos pela canção! Tantos para a máscara mais original! Podem seguir. Até à Mãe de Água, senão ficam desclassificados! Intransigentemente!
Seguem-se o segundo, o terceiro e o quarto grupo, quase sempre diferentes. Igual, só o entusiasmo, a folia! Caras pintadas, cabeças cobertas com vacas brutas características dos Bijagós, hipopótamos, elefantes, dragões, pelicanos crocodilos, tudo feito com papel de sacos de farinha moldados em molhado sobre moldes de lodo. No meio deles, muitos “Patetas” e um Super-Pateta. O anti herói, promovido a herói.
Durante cinco horas e meia foi o mesmo desfilar de cor, de música, movimento, engolidores e cuspidores de fogo, um tractor rebocando seis atrelados carregados de bailarinas no meio de enfeites de palmeira e de casotas construídas em crintim, simbolizando a criação de farmácias pelo país fora.
Um avião chegou, todo forrado de lenços coloridos como os que as mulheres usam, encimado pela bandeira da jovem Guiné. De dentro saíram cinco personagens mascarados, cada um deles representando uma figura importante.
A noite entretanto caíra havia horas. A iluminação da praça dava agora ao espectáculo um efeito completamente diferente, realçando só o colorido mais vivo no meio da massa  indiferenciada que, apesar de tudo, palpitava sempre.
Na curva da rotunda apareceu em dada altura, um cartaz monumental. Nele a frase: “CARNAVAL ANTI IMPERIALISTA”.
Foi então que se distinguiram as figuras que agitaram a multidão. Cárter, com a maleta dos “DIREITOS HUMANOS” a abarrotar de dólares, e um ajudante que carregava nos braços a Bomba de Neutrões. Junto dele, subservientes, Muzorewa e Vorster. Uma figura de Hitler, sob o cartaz, “DEUS NO CÉU, HITLER NA TERRA”. Com eles, uma figura minúscula que escangalhou muita gente a rir. Spínola, com o seu conhecido gesto de “MEU POVO”. Que pandilha!
Seguiam-nos muitas dezenas de mascaras representativas da bicharada mais variada.
A multidão, na ânsia de melhor ver apertava, obrigando os da frente a invadir o espaço do cortejo. O júri, mal podia observar, e o locutor, excitado, gritava palavras de ordem anti-imperialistas.
Finalmente seguiu o grupo depois de obter a melhor classificação nos três géneros considerados.
Chegou a informação de que ainda faltavam catorze grupos. Acabaram por desfilar todos, a multidão sem arredar pé.
Faltavam cinco minutos para as nove quando, cerca cinco horas depois, o último grupo desfilou na antiga Praça do Império, sob o monumento agora encimado pela estrela do PAIGC.
Não havia, quem não reconhecesse a grandiosidade do desfile. Superou todas as expectativas. Ali mesmo, meia hora depois, estavam apuradas as classificações.
Primeiro prémio individual: - Viagem aos Jogos Olímpicos de Moscovo.
Primeiro prémio de grupo: - quarenta contos.
Houve prémios até ao décimo classificado.
Fiquei fatigado depois de tirar cerca de quarenta fotos por hora. Seis rolos e meio de “slides”.
Depois do jantar, havia bailes de máscaras programados em diversos lugares da cidade.
Disse que estava cansado, mas com o entusiasmo da festa, da grande manifestação colectiva e espontânea, decidi mascarar-me também. Pintei a cara e saímos para a rua ao encontro dos amigos.
Foi o CARNAVAL 80 DA GUINÉ BISSAU.

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