quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O BURRO CARDO




O BURRO CARDO

5H14m
Era daquelas tardes luminosas quando o sol parece de prata e os pinos dos pinheiros se estiram pelo descamado dourado do restolho velho cheio de cardo.
Ali, numa brancura de areia, rés-vés com a caruma envernizada, a gente descansava.
Numa fogueira de pinhas assávamos pedaços toucinho com a grossura de uma mão de travessa, espetados em forquilhas de esteva apanhadas ali à mão, naquela corgazinha que dá para o barranco. A gordura pingava do pique, com pequenas explosões ao cair nas brasas de pinha brava.
Toucinho assado daquele com pão mole, só quando o rei faz anosou pensei parafraseando o Zé Candeias, - quando as galinhas tiverem dentes” .
Era daquelas tardes em que as cigarras serram o ar aos bocadinhos e não fica nenhum para se respirar.
Foi quando apareceu aquela invasão lá embaixo, na curva ao pé dos pinheirinhos redondos, criando uma nuvem de poeira fina a pairar suspensa, sobre o verde claro do pinhal.
A algazarra cresceu à medida que o magote avançava. Eram três homens de burro, um velho e um moço a pé, agarrados às cordas e arrastados em trote forçado aos tropeções.
À frente, um burro cardo com cinco cordas à roda do pescoço, trote ligeiro suado e empoeirado, a cabeça fincada de lado, a arrastar os outros todos. E o burro, sempre a puxar, no seu trote ligeirinho, saiu do caminho, cortou a ponta do restolho, atravessou a pelada de areia, abrandou o trote e veio a passo parar a duas braças do Zé Pedro, que segurava na mão o pão mole comprado no forno da Praia.
Eu esqueci-me da fogueira e fiquei com o espeto do toucinho nas mãos a olhar, ora para os homens que ficaram quedos, ora para o Zé Pedro que olhava sorridente para o burro.
Olhei-o também. Nunca tinha visto um animal assim; cinzento liso lindo, pelo curto, com uma comprida lista preta escarranchada nas cruzes, corpo roliço como um porco de engorda. Bicho forte como uma mula. Não trouxera ele aqueles homens e burros todos a reboque não sei donde, que eu não os conhecia?
- É bicho que nunca trabalhou. Tem mais força que duas juntas. Compri-o pensando co amansava, mas já tiri daí o sintido. – Isto disse um homem que saltou para o chão limpando a testa com um lenço de riscado dos grandes, daqueles que o Zé Pedro vendia.
Olhei de novo para o tendeiro. Estendeu um pedaço de pão para o burro e perguntou-lhe:
- Gostas de pão? Toma lá. – Aproximou-se do animal com uma confiança tão grande que ele nem tugiu. Parecia que tinha havido ali um assombramento, que fez os homens parecerem árvores num dia de calma.
E o Zé Pedro a falar com o burro. E a oferecer-lhe o meio pão com uma mão e com a outra a atrever-se para o pescoço do animal. Mexeu orelhas; para a frente, primeiro uma, a seguir a outra, e depois as duas para trás baixando-as até às crinas.
- Ai que ele morde. – Pensei eu. Mas o bicho aliviou a baixadura das orelhas. E ele a falar com o burro.
- Gostas de pão, gostas. Um bicho bonito como tu, tão luzidio, com um passo tão certinho gostas de pão e de festinhas, não é verdade? – e dava-lhe uma palmadinha suave mais adiante. – Seu maroto. Tu não és burro, não! Burrinho lindo é que tu és. Mas burro não. Vá prova lá do meu pão. – E a mão direita a chegar à altura da espádua.
Vês como é bom o pão de trigo? Foi o Ti Adelino que o fez e aquilo é boa gente. Lindo bicho. Tu sabes bem do que gostas, não é verdade?
Aí, o burro cheirou melhor o pão, abriu a boca pela esquerda e mordiscou a côdea.
- Além de esperto és bem educado, menino bonito. – A mão avançou abrindo caminho ao braço que foi descansar suavemente no lombo roliço.
O cheirinho do pão mole chegava até onde eu estava fazendo-me crescer água na boca. O burro abriu a dele, desta vez segurando bem forte um pedaço do tamanho de um punho. Forçou e partiu, começando a comer.
- Estás a ver como é bom, meu anjinho. Vamos ser amigos?
Com a mão já corria todo o corpo do animal do pescoço às ancas, do lombo à barriga, numas carícias entremeadas com palmadinhas amistosas.
Não me contive. Comecei a bater palmas. Comecei, disse eu. Senti-me como se o tivesse feito numa igreja, tão grande era o silêncio e o respeito estampado no rosto dos desconhecidos, frente de um milagre assim. O Zé Pedro a abraçar o burro, e o burro a comer pão e a dar cabeçadinhas no seu novo amigo.
Foi quando reparei nos olhos do animal. Antes eram só aquelas carochas pretas na cabeçorra cinzenta, mas visto assim, na serenidade daquele quadro vivo eram olhos a valer. Eram janelas de meiguice, coalhadas de azul aquoso, como duas lágrimas suspensas, que, lá do fundo, pareciam sorrir descontraídos de prazer com o pão e as festas no lombo todo.
O momento fazia aquilo parecer uma aparição, até a tensão foi quebrada pelo Zé Pedro com uma daquelas gargalhadas que mais ninguém dava. Eram cataratas de riso a inundar o arneiro, sonoras gargalhadas bem timbradas que repartiam o espaço á nossa volta, penetrando a paliçada do pinhal.
O riso contagioso passou-se aos homens num relaxamento benfazejo, enquanto o burrinho foi mordiscar junto dos outros os pastos secos do restolho mais próximo.
- Quanto quer por ele? – Perguntou o Zé Pedro.
- Três gramáticas e está o negócio fechado.
O sol já ia baixo. Os homens afastaram-se ensaiando a história que se iria desdobrar em mil versões correndo seca-e-meca. 
Voltei a atear o fogo com duas pinhas, aquilo a martelar-me a ideia a compasso.
- Três gramáticas! Quanto é isso?
O Ensinador de Burros ouviu-me a falar sozinho. Percebeu o meu balbuciar e explicou-me.
- Ele quer aprender a falar com os burros.
6H35

28OUT86
Fernando Fonseca

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