terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Estrada de Santiago

Nunca tinha visto uma noite de Novembro assim.
Ainda ontem caiu aquela carga de água que encheu os barrancos até mais não, arrastando cepos e canas, vergando silvados e canaviais, com uma fúria que força nenhuma deste mundo poderia arrostar. Fui dar uma volta pelo arneiro na esperança de achar algumas púcaras, aproveitando o lusco-fusco e a claridade daquelas nesgas de nuvens avermelhadas rasando o mar.
Ao subir a ladeirinha até às Pedras Pardas, fechou-se a noite na charneca e o cerro da gurita, tapadinho do negro das estevas ali ao lado, disforme, aprisionado na dimensão da noite. Procurei uma pedra que eu sabia estar algures por ali e sentei-me atirando o corpo num abandono, as costas no borne invisível.
Que noite! Pensei maravilhado. Ali na direcção de Marmelete, a meia altura do céu a estrela Sírius ofuscava com a sua claridade uma infinidade de outras mais distantes; também a meia altura mas para leste, o Setestrelo abrindo caminho a Orionte.
Na direcção do Cabo do Sardão, tão baixa como nunca vi, os pés de cadeira da Ursa Maior, convidavam a seguir com o olhar uma vertical até à Estrela Polar.
Da Lua, nem o sentido.
O céu estava tão salpicado que se viam estrelas quase a tocar na linha do horizonte. Parecia que o céu se apoiava na terra. O pisca-pisca de um jacto em altitude de cruzeiro, parecia seguir pela Via Láctea, tão luminosa, indeterminada.
Não bulia uma palha; e neste abandono benfazejo, dei comigo a ouvir lá longe muitos anos atrás, a minha voz de criança maravilhada com o espectáculo da noite, deitado nalguma eira de Agosto, enterrado em palha de aveia, relutante em me entregar ao sono, mais virado ao sonho alimentado pelas profundidades da noite insondável. Maravilhado como hoje, com o tecto mais rico que desejar se pode. E a memória de uma voz que fora a minha:
- Pai. Porque é que lhe chamam Estrada de Santiago? – E percorria-a com o olhar para norte, onde sabia ficar Santiago do Cacém.
- É dos tempos antigos, quando os peregrinos iam daqui para Santiago de Compostela que fica também para esse lado, mas já na Galiza em Espanha.
- Ó pai e as estrelas estão assim todas ao pé umas das outras? - Ou então:
- Quanto tempo demora um avião daqui até às estrelas? – Ou:
- Porque é que não se pode ir de avião? – E invariavelmente:
- A gente morria queimados antes de lá chegar?
Mas as caminhadas eram longas já que a vida dura nos obrigava a percorrer grandes distâncias, e a fadiga baixava-me suavemente  as pálpebras, e era já em sonhos que eu brincava com as estrelas escolhendo-as uma a uma, dando-lhe nomes inventados, até ter um saco cheio de pirilampos, e dizer com ternura ao meu pai:
- Tenho uma coisa bonita para ti.
Nunca uma noite de Novembro me tinha oferecido prenda como esta em forma de voz de criança curiosa, e a lembrança meiga do meu primeiro mestre; meu pai.
Respiro fundo. A pedra dura onde me recosto desperta-me chamando-me à realidade e ao presente. Mas a realidade é às vezes pouco consistente. E a prová-lo, aí está esta noite estrelada, as estrelas descendo à Terra, e a charneca desde o Brejão até ao Cavaleiro, salpicada de estrelas pousadas nos montes entre os pinhais, onde moram crianças que sonham com sacos cheios de pirilampos com nomes de estrelas, e com viagens espaciais.

Fernando Fonseca

Sem comentários:

Enviar um comentário