terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A OLARIA DO PINOTA


Ficava ao pé do Largo da Loja. A olaria já não existe, e o próprio largo foi “absorvido” pelas três ruas confinantes.
Foi, durante muitas gerações, uma olaria de referência entre as cinco, que permaneciam activas nos anos 50 do século XX.
Tinha três divisões: a oficina, o quintalinho e o forno.
É difícil dizer qual das três tinha mais encantamento

A oficina

Na rua, encostadas às paredes, alinhavam-se por vezes as peças meio secas para curar melhor.
O Campinhos chegava com o burro carregado de torrões numa golpelha de palma, abria as duas portadas da oficina entrando com o animal até ao meio da casa, e metia ombros de um dos lados; a carrada dava uma cambalhota e os torrões precipitavam-se no lajedo de xisto com uma trovoada baça.
À volta desse monte de barro seco, a garotada era bem aceite pela gratuita colaboração; sentados num mocho ou num torrão maior a fazer de banquinho, martelavam com um maço até desfazer o granel, e era ver quem despejava mais alcofadas na celha do canto, junto à parede da bancada. Cheia a celha, vazavam-se umas quantas talhas de água e a terrugem ficava ali a ensopar de um dia para o outro.
Por norma, era o Campinhos quem, depois de se descalçar, arregaçava as calças até ao joelho, prendendo-as com os atilhos das ceroulas. Depois, recuando uns passos, iniciava uma corrida súbita para, com o balanço, saltar até ao topo do torreão de barro retirado da celha.
Era um gozo ver, como os seus pés brancos depressa ficavam enlameados, enquanto o calcanhar direito sempre à volta do montão, ia calcando o barro em rodadas sucessivas numa sequência espiralada de rastos até que, sobre o lajedo, se formava uma enorme filhó.
Então, com a foice quebrada, aplicava uma série de cortes até ao chão, separando a filhó em pedaços que, enrolados, eram de novo postos em pilha.
Quando havia pressa no barro, os dois oleiros, o Heitor que era o mestre e o Campinhos, davam-se o braço esquerdo e rodavam cada um por seu lado, calcando, calcando e cantando, até que a bolacha os obrigava a ficar afastados do centro. Outra filhó, e o barro ficava amassado.
 O que mais me intrigava era o facto de ser o Campinhos, filho do patrão e por isso patrão também, mas quem mandava era o Heitor, o empregado. Baralhava-me aquilo de o empregado mandar no patrão. Devia ser por isso, que por vezes havia grandes zangas entre os dois, mas que não duravam muito. E quando passavam voltava o Campinhos, chapéu cinzento puxado para a nuca, para a bancada ao pé da janela com uma enorme leiva vermelha, a separar as pedrinhas do barro que se acumulavam na sua frente como um monte de caganitas, cantando cantigas bonitas, enquanto o Heitor fazia magia com as mãos, o barro escorregadio a rodar entre os dedos compridos.
Primeiro era a pela, atirada com precisão para o centro da roda. Depois, molhando as mãos no alguidar da lambujem, humedecia e apertava o barro que se esgueirava como uma enguia a libertar-se da vontade do homem. No momento preciso ele mudava a posição das mãos e com o polegar e o indicador, fazia uma covinha no alto, que se alargava e afundava, criando uma parede entre o indicador e o dedo médio.
A pela, já forma viva rodando sempre, criava bojo ou adelgaçava caprichosamente, pela acção das mãos do oleiro. Uma, no fundo do buraco a moldar-lhe a alma; a outra, por fora a acariciar-lhe o corpo.
“É um vaso. É um barrilinho. É um mealheiro” – pensava ansioso, com esperança de que os meus pensamentos pudessem influenciar na decisão da forma definitiva.
Um arame fino a trespassar a base junto ao rodízio, dava por acabada a obra.
Era um encanto ver aquelas mãos grandes, toscamente enxugadas num trapo velho a pegarem nos púcaros, nos vasos e nas enfusas, com uma segurança que fazia esquecer o aspecto gelatinoso de há pouco, colocando-as na tábua que uma vez cheia, o Campinhos levava para secar no canto sombrio da olaria longe das correntes de ar.

O quintalinho

Saindo da oficina para as traseiras, era o quintalinho, passagem única para o forno.
Do lado de lá, um muro de taipa esboroado por passagens clandestinas dos moços que iam às sorvas na cerca das Manuelas. À esquerda, uma parede de pedra e barro dava para o quintal do sapateiro. Do lado direito uma passagem larga para o casarão do forno. Ao meio uma única árvore, a romãzeira.
Não era grande coisa a romãzeira, mas tinha encanto. De copa bem feita, quando vinha a primavera, cobria-se de folhinhas verde-claro, a contrastar com o avermelhado das paredes de taipa. Chegando Maio, enfeitava-se com barretinhos encarnados orlados por uma franja rosada, e nós, às escondidas dos oleiros apanhávamos as flores e no rechonchudo dos cálices, desenhávamos à esferográfica olhos, narizes e bocas, inventando personagens de fantasia, bonecos cabeçudos, anões com o corpo de barro. Mais tarde viriam as romãs de gengivas à mostra, poucas, sobreviventes dos nossos inconscientes desbastes.
E o Campinhos:
- S’eu apanho algum a mexer nas romãs, faço-lhe um casaco de lambujem.
A gente às escondidas ria-se com os anõezinhos de corpo de barro já seco.
Pela Páscoa ganhei um pacotinho de amêndoas num contracto ao Manelinho Gaspar. Comi algumas; as outras, pu-las num ninho fingido com ervas secas, a fazer de conta que era de pintassilgo. Chamei o meu irmão:
-Anda ver um ninho que é só meu. Já tem ovinhos.
Ele subiu a romãzeira. Espreitou e disse:
-Olha, já nasceram, anda ver.
Apressado, pus um pé na forca mais baixa e balancei o corpo para o alto. As formigas tinham dado com as amêndoas. Saltei para o chão e atirando torrões de barro seco persegui o meu irmão que ria de gozo.
- Já nasceram. Já têm penugem!

O forno

Era sombrio, chão puído coberto de palhas, restos do empalhamento das carradas de loiça levada para as feiras das redondezas.
O forno era como eles chamavam a todo o casarão; armazém, secagem de Inverno, casa da lenha e o forno propriamente dito. Ali se alinhavam as loiças à espera da cozedura. Assentes em pranchas de solho, enfileiravam-se as talhas, as enfusas e os barris para água, os mealheiros, fogareiros e assadores de castanhas, os vasos, as salgadeiras e os potes. Ao lado, as travessas, panelinhas, pucarinhos e alguidares para vidrar depois da primeira cozedura.
As peças iam-se acumulando até que um dia, chegava a carrada de lenha vinda das brenhas. Ele era tojo, carqueja, esteva, urze, e tudo o que desse boa chama.
Chegava numa carreta, e os homens com forcados de pau polidos pelo uso, fincavam as pontas a meio da carrada e todos à uma, forçavam e voltavam a forçar balançando cada vez mais, os pés assentes na parede atrás deles, até que o monte de lenha desabava de encontro à parede da olaria, entupindo a rua e deixando-a cheia de picos que por norma se me cravavam nos pés nus, razão porque o meu pai se zangava com “aqueles malandros”.
O Heitor arrumava as loiças secas na câmara de cozedura, por cima da fornalha, até ao anoitecer.
Nesses dias jantava-se apressadamente. O Campinhos já tinha metido a lenha toda do lado de dentro do gradeado, à volta da cova por onde se descia para aquele inferno.
A Tiznoveva, morava na casa ao lado da minha, e era a única mulher da aldeia que fumava. Sentava-se no portal a enrolar a mortalha, mandava o Chico trazer um tição para acender o cigarrinho, e a quem comentasse mandava para o inferno. No Largo da Loja morava a Tia Rosa, que era beata e também falava no inferno, mas por muito desprezo e tons de heresia com que o pintasse, nunca me provocou qualquer receio.
É que o inferno, onde diziam que as chamas devoravam os corpos debaixo da terra, esse inferno, onde afinal eu não via corpos nenhuns, era mesmo ali em frente da minha casa, na olaria onde o Heitor cozia as loiças. Eu não tinha dúvida nenhuma de que o inferno fosse uma coisa boa, embora os espinhos da lenha se me espetassem no rabo quando me sentava na beira da cova. Como era bom o calor que se libertava daquele lugar, aquecendo a gaiatagem e alguns mendigos que por ali passavam no Inverno por ocasião das cozeduras.
O oleiro, de forcado em punho, dois ferros pretos e aguçados na ponta da comprida vara, enfiava molhos e molhos de lenha pela goela esfomeada.
Eu olhava para a cara dele, magra, comprida, chapéu velho em bico a cobrir os cabelos suados, pérolas de reflexos vermelhos a escorrer-lhe pela testa curtida rodeando as sobrancelhas pelas fontes abaixo, a infiltrarem-se entre o pescoço e a gola da camisa. As pálpebras, semicerradas numa careta que tentava fugir ao calor e ao encadeamento.
Eu gostava do senhor Heitor; ele sabia como ninguém, fazer magias no barro, só ele é que sabia enfornar, mais ninguém metia o braço esticado no forno aceso para sentir se a loiça tinha a conta certa de calor.
E ali, naquelas noitadas de Inverno, ao pé dele, o frio não se atreveria a chegar-me aos ossos.
Mais uma forquilhada de tojo para o inferno. E o Heitor, assumia naquela sua figura entre o heróico e o fantasmagórico, entre a luz e as trevas a expressão de um diabo a alimentar as chamas do Inferno.
Um Diabo bom, e um Inferno quentinho.
Era por isso que eu não levava a sério as orações da Tia Rosa nem as pragas da Tiznoveva.

Fernando Fonseca

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