quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

MINHA AMIGA, A PRINCESA





Minha amiga a princesa




I



Tenho uma amiga princesa.

O interessante é que só eu sei que ela é princesa. É um segredo tão bem guardado, este que agora revelo, que tenho dúvidas de que ela própria o saiba; que o saiba conscientemente, porque além dos conscientes, há saberes que residem na índole das pessoas como se se albergassem fora do conhecimento, e que só se revelam de modo intuitivo.

A minha amiga talvez não saiba aquilo que é, ou…que foi, não sei bem. Tem um porte digno, supremo e tranquilo que só tem quem foi bafejado com o dom da perfeição. Um porte, ou melhor a emanação de uma essência, que nenhuma varinha de fada má consegue extinguir, ainda que o esconjuro malfazejo consiga mudar a forma, induzir o esquecimento ou remeter para sonos intermináveis.

Guardião até hoje, de um segredo que me foi revelado nas profundidades do seu olhar de uma beleza mansa e doce, na suavidade do seu deslizar como se o chão mais íngreme, mais não fosse que um alcatifado de diáfanas nuvens, decidi hoje, que a omissão da sua história, seria o agravar de uma injustiça imbuída de maldade que se abateu sobre a minha grande amiga.

II

Era uma vez uma menina, princesa de condição, nascida num palácio construído pela Natureza, tendo como tecto a mais cintilante incrustação de jóias nascidas na vastidão do Universo, dispostas por mestre ourives em sugestivas constelações, imensas galáxias e nebulosas de sonho.

Muitos foram os músicos que tentara em vão, reproduzir a música que se libertava no canto das aves que a embalaram no seu berço perfumado.

E a Menina Princesa, que cresceu em ambiente de harmonia, de arte e amor, caracterizava-se por ter uma personalidade de cuja essência se reflectia uma sensação de paz e tranquilidade que naturalmente se contagiava a quem dela se aproximasse. Curioso é, que essas qualidades eram, por quem as recebia, passadas a quem não tinha a possibilidade de ver e ouvir aquela menina para quem solidariedade e amor, eram os primeiros atributos de um espírito elevado.
As pessoas tocadas, começaram a acreditar que os bens materiais eram meros instrumentos para elevar a dignidade de todas as pessoas sem excepção, e que o mundo era o lar que deveria ser amado, como se fora a mãe de onde tudo brotou. E que o estatuto dos dignitários, só se justificava, como o de detentores da responsabilidade para assegurar essas duas dimensões; A dignidade dos homens e o culto pelo Mundo-Mãe.

Mas na sombra da dissimulação e da lisonja, escondia-se uma rainha que adorava jóias diferentes, jóias arrancadas com estertor e sangue de escravos, ao ventre da Mãe-Mundo, e se inebriava na adulação de quem queria favores seus. Percebendo que a corte dos seus bajuladores era cada vez menor, decidiu um dia mandar fazer uma plástica para dissimular as feições que deixavam ver a bruxa má que era, mandando construir em seu lugar o rosto de uma menina de aparência ingénua e beleza cerácea, e pediu para ser recebida pela princesa.

A Princesa tinha sido informada pelos seus amigos mais próximos, que a rainha preparava algo de mau contra si e aconselharam-na a evitar a entrevista. Mas ela, que acreditava que a bondade e a inteligência poderia surtir um efeito neutralizador da maldade e até, colocar uma semente de bondade no coração da bruxa, recebeu a rainha.

A megera trazia consigo para oferecer, uma rosa amarela lindíssima que exalava um perfume etéreo e tão doce, que não deixava sentir o nódulo de mistério e de maldade no seu âmago.

Quem oferece uma flor cortada do seu caule, está a oferecer inseparavelmente, um prenúncio de morte.

A Princesa aceitou a flor, e mal os seus finos e delicados dedos a aproximaram do nariz para melhor sentir o seu aroma e simultaneamente manifestar o seu apreço pela oferta, todo o palácio foi inundado por tão intenso clarão, como se uma estrela gigante vermelha tivesse explodido, estendendo o seu fulgor sobre o tapete do tempo até aos insuspeitados confins do cosmos.




O esquecimento penetrou na alma de todos os que estavam na sala, percorrendo um por um todos os neurónios, anulando as memórias vivas numa assinapse geral.

Cada um dos presentes foi transformado num animal diferente. Em vez da menina lindíssima a fazer lembrar um anjo de luz, estava agora no centro da sala uma vulgar gatinha parda e branca de neve, com uma pequena mancha amarela no focinho, a assinalar o breve toque da rosa no nariz da Princesa.

III

Um dia, já lá vão dezasseis anos, deram-me para criar, uma gata ainda juvenil.
Hoje, estava o sol a despontar no pinhal e a entrar-me pela fenda do cortinado, a minha gata, muito delicadamente subiu para a cama e veio acomodar-se maviosamente sobre o meu peito a três centímetros do meu rosto, como que a sugerir-me telepaticamente como o faz há muito tempo, que lhe quebre o feitiço e ali mesmo a faça de novo menina. Menina Princesa.

Mas eu tenho medo. Medo que o meu beijo, em vez de recuperar a menina, traga para o mundo uma anciã em final de vida.

É que uma era de corrupção de cobiça, de fanatismo por poder pessoal, de opressão de nações indefesas, de guerras cruéis e outros tantos delírios, espalha-se pelo mundo.

Receio que o seu coração não resista ao espectáculo deste ensaio de inferno.

Ou talvez… a sua beleza interior, faça renascer o amor…

Não sei.



Alte-12/01/2008
                                                                                             F.Fonseca

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