terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O BURRO CARDO






Foi numa daquelas tardes luminosas, quando o sol parece de prata e os pinos dos pinheiros se esticam pelo descampado doirado pelo restolho velho cheio de cardo.
Ali, numa brancura de areia, rés-vés com a caruma envernizada, a gente descansava. Numa fogueira de pinhas, assávamos um pique de toucinho com a grossura de uma mão de travessa, espetado numa forquilha de esteva apanhada ali à mão, naquela corgazinha que dá para o barranco. A gordura pingava do pique com pequenas explosões ao cair nas brasas de pinha brava.
Toucinho daquele, assado, com pão mole, só quando o rei faz anos, (ou quando as galinhas tiverem dentes) lembrei-me de como dizia o Zé Candeias.
Era uma tarde em que as cigarras serram o ar aos bocadinhos e não fica nenhum para se respirar.
Foi quando apareceu aquela invasão lá embaixo na curva, ao pé dos pinheirinhos redondos, criando uma fina nuvem de poeira ocre a pairar suspensa, sobre o verde do pinhal.
A algazarra cresceu à medida que o magote avançava. Eram três homens de burro, mais um velho e um moço a pé, tapados de pó que não se viam as caras, agarrados às cordas, arrastados em trote forçado, aos tropeções.
A gente não precisava de sair dali para ver o espectáculo. Eles é que se vinham aproximando.
Um burro cardo, sempre a puxar no seu trote ligeirinho saiu do caminho, cortou a ponta do restolho, atravessou a pelada de areia, abrandou o trote e veio a passo, parar a duas braças do Zé Pedro que segurava na mão o pão mole comprado no forno da Praia. Esqueci-me da fogueira e fiquei com o espeto de toucinho nas mãos a olhar, ora para os homens que ficaram quedos, ora para o Zé Pedro que olhava sorridente para o burro. Olhei-o também. Nunca tinha visto um animal assim; um cinzento liso, lindo, pelo curto, uma comprida lista negra escarranchada nas cruzes; corpo roliço, como um porco de engorda. Bicho forte! Não trouxera ele todos aqueles homens e burros a reboque desde não sei onde, que eu não os conhecia?
-É bicho que nunca trabalhou. Tem mais força que duas juntas. Compri-o pensando q’o amansava, mas já tiri daí o sintido.
Isto disse o homem que saltou para o chão, enquanto limpava a testa e o pescoço com um lenço de riscado dos grandes, como aqueles que o Zé Pedro vendia.
Olhei de novo para o Zé Pedro. Estendeu o pão para o burro e perguntou-lhe:
- Gostas de pão? Toma lá. – Aproximou-se do animal com uma confiança tão grande que ele nem se mexeu. Parecia ter havido ali um assombramento que fez os homens parecerem árvores num dia de calma.
E o Zé Pedro a falar com o burro. A oferecer-lhe o meio pão com uma mão e a atrever-se com a outra para o pescoço do animal. As orelhas, mexeu-as ele para a frente, primeiro uma, a seguir a outra e depois para trás baixando-as até às crinas.
-Ai que ele morde! – Pensei eu. Mas o bicho aliviou a baixadura das orelhas.
O Zé Pedro:
- Gostas de pão, gostas? Um bichinho bonito como tu, tão luzidio, com um passo tão certinho, gostas de pão e de festinhas, não é verdade? – Dava-lhe uma palmada suave mais adiante. – Seu maroto. Tu não és burro não! Burrinho lindo é que tu és, mas burro, não. Vá, prova lá do meu pão. – A mão direita a chegar-lhe até à espádua. – Vês como é bom o pão de trigo? Foi o Ti Joaquim que o fez e aquilo é boa gente. Lindo bicho, tu sabes bem do que gostas, não é verdade?
Aí, o bicho cheirou melhor o pão, abriu a boca pela esquerda e mordiscou a côdea.
- Além de esperto, és bem-educado, menino bonito! - A mão avançou abrindo caminho ao braço que descansou suavemente no lombo roliço.
O cheirinho do pão fresco chegava até onde eu estava, fazendo-me crescer água na boca, e o burro abriu a dele, desta vez segurando bem forte um pedaço do tamanho de um punho, forçou e partiu, começando a comer. 
- Estás a ver como é bom, meu anjinho? Vamos ser amigos.
A mão dele já corria todo o corpo do animal do pescoço às ancas, do lombo à barriga, numas carícias entremeadas com palmadinhas amistosas.
Não me contive e comecei a bater palmas. Comecei, disse eu. Senti-me como se o tivesse feito numa igreja, tão grande era o silêncio e o respeito daqueles homens à frente de um milagre assim. O Zé Pedro a abraçar o burro; o burro a comer pão e a virar a fronte para o seu novo amigo.
Foi quando reparei nos olhos do animal. Antes, eram só aquelas carochas pretas na cabeçorra cinzenta, mas vistos assim na serenidade daquele quadro vivo, eram olhos a valer; eram duas janelas de meiguice coalhadas de azul aquoso como duas lágrimas suspensas, que lá no fundo, pareciam sorrir descontraídas de prazer com o pão e as festas no lombo todo.
O encantamento foi perfeito, até ao momento em que o Zé Pedro quebrou a tensão com uma daquelas gargalhadas que mais ninguém dava. Eram cataratas de riso que se espalhavam pelo arneiro, sonoras gargalhadas bem timbradas que repartiam o espaço à volta, penetrando na paliçada do pinhal.
Os homens contagiados, fizeram coro rindo também num relaxamento benfazejo, enquanto o burrinho começava a mordiscar junto com os outros, os pastos secos do restolho mais próximo.
- Quanto quer por ele? – Perguntou o tendeiro.
- Três gramáticas e está o negócio fechado.
O sol já ia baixo. Os homens afastaram-se ensaiando a história que se iria desdobrar em mil versões correndo seca-e-meca. Voltei a atear fogo a duas pinhas para continuar o assado, com aquilo a martelar-me a ideia a compasso.
- Três gramáticas! Quanto será isso?
O Zé Pedro ouviu-me a falar sozinho. Percebeu o balbuciar e explicou-me:
- Quer aprender a falar com os burros.

Fernando Fonseca

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