ÀS QUINTAS E DOMINGOS OS PÁSSAROS NÃO
CANTAM
O Tio Zé Augusto, com os seus
setenta e um anos feitos em Maio, é um homem feliz.
Nascido e criado ali no sítio,
tirando a ida às sortes praticamente nunca saiu do seu lugar, com as abas da
serra a nascente e do lado do sol posto, o mar.
A planura toda (a charneca,
dizia-se antes), conhece ele bem, entre Odeceixe e o Cavaleiro, e se a sua
experiência não lhe permite opinião, sobre o ser e o viver de outros lugares,
do seu chão, das suas vaquinhas, das sementeiras e dos matos, conhece ele as
virtudes.
“Na natureza não há nada que não tenha uma serventia” diz ele a
propósito da coisa que para nós, pareceria mais insignificante.
Maravilhado com a sua erudição
simples e telúrica, levei-o um dia num passeio, Relva Grande acima, a descer as
ladeiras “a pique” por caminhos de medronheiros, até às várzeas da Foz da Perna
Seca, vis-a-vis com a Fóia, agigantada de tão perto.
“ Ah, punhão! Como é que esta gente pode viver aqui no meio destas
ladeiras, só brenhas no fundo destes barrancos?” e, homem acostumado a
virar com a aiveca, as areias leves da
charneca, acrescentou: “ A mim, nem que
me pagassem bem pago!”.
Voltamos às Taliscas à boca da
noite. Taliscas é o monte do Tio Zé Augusto e da Tia Rosa, mulher engenhosa como
há poucas. O forno do pão foi ela que o fez com as suas mãos, perante o olhar
céptico de muita gente.
O monte deles, casinha pequena à
dimensão do casal, está enquadrado numa clareira do Barranco do Carvalhal
sumido da planura. A quinze metros da casa no final do declive, passa o
ribeirinho entre canaviais, vimes e seisseiros. Na encosta soalheira é ladeado
por uma faixa de montado e na ladeira sombria, abundam os carvalhos e os
medronheiros. Na zona de contacto do barranco com a charneca, estevais com tês
metros de altura.
O Barranco estende-se cerca de
oito quilómetros por ali abaixo até ao mar, acabando num areal desassombrado,
proporcionando uma faixa em que as características da serra e da planície se
interpenetram, dando origem a um sistema complexo com abundância de exemplares
tanto de flora como de fauna, com destaque para raposas, texugos, e doninhas, ouriços
cacheiros, toupeiras, e lagartos, cágados, cobras de água, bordalos e rãs, etc.,
etc., etc. e onde as aves residentes são muitas e variadas, podendo observar
nas épocas próprias, pintassilgos, pardais, piscos e felosas, cartaxos,
cotovias, arvéolas e picanços, (duas espécies) pegas, gaios, cucos e rolas,
corvos, gralhas, e abelharucos em bandos coloridos e barulhentos, referindo em
tempo frio os abibes, algarvões e abetardas, e tantos mais.
Mas de todos, aquele que o Tio Zé
Augusto mais gosta, é o rouxinol que todos os anos ali em frente no canavial,
passa as noites inteirinhas a cantar e a cantarolar um repertório sem fim,
alegrando as noites monótonas dos ralos, salpicadas do pio dos mochos e
exclamações das corujas, atenuando as insónias próprias da idade, e sobretudo,
para contento daquele homem simples e bom, que conhece a terra com o ninguém e
a ama com devoção.
Assim todos amassem a terra e aquilo
que nela vive, e haveria muitos mais “Barrancos do Carvalhal”, para alegria dos
que tivessem a bênção de lá viver, e para encanto dos que a visitassem.
Infelizmente, entre Sines e
Aljezur, não conheço outro reduto da Natureza tão rico, um dos poucos
ecossistemas que poderá ainda considerar-se intacto.
Nunca falei disso ao Tio Zé
Augusto, mas de cada vez que pela abertura da caça, ouço ecoar pelo barranco os
disparos consecutivos das caçadeiras contra tudo o que voa ou que se esgueira
entre pastos, tenho um desgosto enorme e um receio ainda maior, de que este
pedaço de paraíso esteja condenado a desaparecer, como acontece a tantos outros
de que já só se pode dizer “Era uma vez…”
Continuarão o Tio Zé Augusto e a
Tia Rosa a ouvir todas as noites o seu amigo rouxinol?
É que aos domingos e
quintas-feiras, já não se ouvem os pássaros cantar.
Zambujeira do Mar 08DEZ87
Passaram vinte anos.
À data deste escrito ainda não
tinha começado a invasão de estufas
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