CAIM (de José Saramago)
(Comentário motivado
pela leitura do livro)
Acabei esta noite de ler Caim.
Por razões que não têm a ver só,
com as características da escrita de Saramago que muita gente refere como um
entrave à leitura até ao fim das suas obras, mas por outras que me respeitam,
foi dos seus livros, o primeiro que consegui ler de fio a pavio, com um prazer
de que não suspeitaria ao começar a leitura.
Surpreendeu-me o gozo com que,
julgo eu, Saramago escreveu, contando aquela história. O humor, a ironia, e, logo
à primeira página não a surpresa, mas antes a confirmação do desassombramento
com que o autor usa a sua liberdade de pensador para questionar a alegada
justeza dos chamados “misteriosos desígnios de Deus”.
Penso que os dogmas são abortivos
do desenvolvimento do raciocínio na medida em que amputam conhecimento, e que,
pelo contrário, o exercício da razão traz consigo mais sabedoria e um melhor
uso da inteligência.
Quanto aos dogmas e a todos os
assuntos, cuja discussão é proibida ou simplesmente desaconselhada, é fácil de
entender como servem primorosamente interesses ditatoriais, com o seu cortejo
de sujeições e de submissão incondicional. Estão manifestamente presentes nas
invocações fundamentalistas da actualidade. Em contrapartida, o pensamento e a
discussão das questões subjacentes aos dogmas, abrem-se à diversidade de pontos
de vista, e portanto à aceitação das diferenças, sejam elas quais forem.
Os dogmas protegem as ditaduras,
enquanto a discussão livre e em liberdade é potenciadora de princípios e de
práticas democratizantes.
É este aspecto, no meu ponto de
vista, que constitui o enquadramento filosófico onde se insere a narrativa de
Caim.
O tão pouco que aprendi acerca de
Caim, foi-me inculcado em aulas de catequese que me foram impostas na idade em
que reflexão era algo inexistente, que só viria a revelar-se num futuro
longínquo.
As apreensões que se fazem
naqueles verdes anos, pintadas em alto contraste a preto e branco, de sim ou
não, de quem não é a favor é contra, são pela sua singeleza altamente
marcantes, ficando presentes como padrões para toda a vida. Tanto, quanto nunca
poderão ser questionadas.
É naquela fase de crescimento que
as igrejas instilam o temor de deus. Poderiam ensinar a compreensão da sua
essência, mas isso, ninguém sabe o que seja. O que fica marcado na matriz das
crianças é que Deus não é para brincadeiras, mesmo quando simultânea e
paradoxalmente o anunciam como a essência do Amor.
Saramago especulou sobre esta
ideia dúplice de Terror e Amor. Mais terror do que amor, numa leitura
panorâmica do Antigo Testamento.
Entendo o que o levou a
questionar esta dualidade inquestionável.
Vi, a dado passo, como foi que
Caim se transfigurou de figura bíblica e mitológica, porque não histórica, num
homem do mundo consciente dos seus defeitos, crítico, e assim liberto e livre,
mau grado ver-se amiúde colocado perante situações imprevistas, manancial de
oportunidades para fundamentar a sua crítica cada vez mais clara ao
comportamento do senhor.
Inserido em reais cenários
bíblicos, Saramago transfigura-o num homem simultaneamente actual, não só pela
referência a conceitos e artefactos do nosso quotidiano, como pela actualidade
do debate que propõe, e constitui o instrumento ideal para a crítica de
Saramago.
Vi como Caim, nos seus avanços e
recuos no tempo, (ficção actual), configurava um Homem conhecedor da história
da humanidade, cujo testemunho do passado lhe permitia antever o futuro, até
que a certo ponto, por desespero, e sobretudo por desacreditar nas competências
do Senhor, decidiu interferir nos seus desígnios.
O seu percurso, desde o acto de
barbárie para com Abel como reacção a uma incompreensível e inaceitável preferência,
pela oferenda do irmão aceite em detrimento da sua, ofertada com igual devoção,
os seus testemunhos de “Justiças” inexplicavelmente criminosas aos seus olhos,
(insondáveis desígnios de Deus?), tendo sido sucessivamente Arquimedes,
Copérnico e outros homens de ciência, e, sem deixar de ser o vulgar almocreve
foi também o filósofo e o místico, na medida em que, primeiro junto dos anjos e
finalmente com o senhor, questionou ao mais alto nível a natureza humana, “obra-prima”
de Deus.
Carismática, foi a tentativa de
Deus ao reconhecer o falhanço, decidir recomeçar o seu projecto para a humanidade.
Se tomarmos o dilúvio
literalmente, como sempre foi prática da Igreja através dos seus ministros e
dos seus catequistas, modo interpretativo de que agora acusam Saramago, está
visto que, este recomeço que pretende reportar-nos a todos como descendentes de
Noé, se traduz num monumental falhanço.
Ou, retomando a parábola da
aposta entre Deus e Satã, seremos nós de novo, bagos de feijão em cima de uma
reles mesa de taberna?
Fernando Pessoa disse, em Mensagem. - Deus não é apenas criador, é criatura, fonte de erros. ( *)
Acredito que seria para evitar
nova frustração, tanto aos homens como ao próprio Deus, que Saramago impeliu
Caim aos crimes perpetrados (supostamente), enquanto a arca derivava num mundo
alagado.
17Nov2009
Fernando Fonseca
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